OS MORTOS QUE SE LEVANTAM
À memória de David Capistrano da Costa,
cujo corpo não teve direito à sepultura.
Os mortos-vivos se levantam
das covas rasas sem caixão,
sem cruz,
sem data,
sem epitáfio.
Os corpos carcomidos
acordam do pesadelo,
tateiam o caminho da volta,
andam sobre as brasas,
atravessam as avenidas,
peregrinam pelas praças
em busca das causas
perdidas em nosso tempo.
Os mortos arrastam os esqueletos
puxando correntes de mercúrio
pelos corredores sem fim,
assustando ainda mais
os que choram rios de lágrimas,
aterrorizando os que se escondem
nas palafitas sobre o mangue,
fazendo correr os soldados
com fuzis em punho,
que nenhuma bala os deterá.
Os mortos-vivos invadem
as ruas em sobressaltos,
dezenas,
centenas,
milhares,
com os esqueletos desengonçados.
As mães aflitas correm
para ver se são
os seus meninos levados;
as noivas sedentas de amor
procuram por seus amados
em estado de putrefação;
as mulheres viúvas indagam
com uma fotografia nas mãos;
os avós chamam pelos netos
entre todos os que caminham
cambaleantes nas calçadas.
Os que encontram seus desaparecidos
os levam nos braços para casa,
para cuidar das feridas,
tratar as mazelas,
fechar as chagas,
extrair as balas,
emendar o fêmur,
recolocar a costela,
recompor a tíbia,
refazer a arcada,
acariciar os infortúnios,
cada qual com um esqueleto,
agradecendo aos céus.
Os mortos-vivos da Pátria
se levantam do inferno,
denunciando o horror,
desafiando o regime,
enfrentando o tempo,
dezenas,
centenas,
milhares,
em busca da Liberdade.
Os mortos-vivos se levantam
para o encontro com o amanhã.
Rio de Janeiro, 9.4.72