XXXI
Exilado na vida regida pelos números
a me transformarem numa
orquestração de ossos rotulados
carimbados, catalogados, fichados
fiscalizados, controlados, comandados
computados e autuados como
ossos pagadores de impostos
mais que ossos, gavetas ambulantes
para as certidões e os documentos
e os atestados e os recibos
e as carteirinhas e os talões
e os cartões de identidade
em que não mais me reconheço
na minha vida nominada
pelos pingos de tinta
que saem
da esferográfica dos governantes.
Exilado na dívida externa e nas cadernetas
em que a vida se poupa
para adquirir seus túmulos
ou para o que acontecerá
quando não tiver mais vida
para alugar-se.
Comentário do pesquisador
Estre trecho pertence ao longuíssimo poema de 88 páginas, publicado em 1977, intitulado "Canção do exílio aqui ou Alguns elementos para o inventário de uma geração nesta cidade do Rio de Janeiro". Todo o texto se ergue a partir de uma construção paralelística em que todos os versos se iniciam com as mesmas palavras "Exilado no/a", que indicam a condição de estranhamento e deslocamento do poeta frente ao seu tempo. Como apontado por Alceu Amoroso Lima (1977), no prefácio do próprio livro que abriga o poema, não se trata de um exílio espacial, mas de um exílio no próprio tempo e nas instituições sociais dominantes. O trecho destacado acima se encontra na seção "Desenvolvimento" do livro-poema. Cabe lembrar que a obra inteira tematiza a vida, o cotidiano e a história durante o período da ditadura militar, fazendo referência direta a inúmeros acontecimentos e figuras da época. Por conta da extensão do poema, que inviabilizaria a sua publicação na íntegra, foram selecionados apenas alguns trechos para compor o Memorial Poético dos Anos de Chumbo.