XXIX
Exilado nas portas que não se abrem mais
totalmente
porque a fresta é o espaço bastante
para espreitar a vida que chega
como a inimiga
Exilado na suspeita e na desconfiança
soltas no fio da conversa
como a aranha em sua teia
(e o olhar de um homem a outro
pula da retina para o gelo
do copo, ou para o medo embutido
no próprio ser das paredes;
pula e pula e pula
da retina para a distância
e da distância para a retina
como a pulga ou a mosca
que salta para aqui e para ali
para o longe e para o perto
para o limpo e para o sujo
para a merda e para a flor
porque não tem aonde ir
em seu ir a qualquer parte
da vida que não se sabe a vida).
Exilado nesta coleção de chaves que se aumenta
neste tempo de portas
cada vez mais numerosas
entre a segurança e o medo e entre
a liberdade e o homem.
Comentário do pesquisador
Esse trecho pertence ao longuíssimo poema de 88 páginas, publicado em 1977, intitulado "Canção do exílio aqui ou Alguns elementos para o inventário de uma geração nesta cidade do Rio de Janeiro". Todo o texto se ergue a partir de uma construção paralelística em que todos os versos se iniciam com as mesmas palavras "Exilado no/a", que indicam a condição de estranhamento e deslocamento do poeta frente ao seu tempo. Como apontado por Alceu Amoroso Lima (1977), no prefácio do próprio livro que abriga o poema, não se trata de um exílio espacial, mas de um exílio no próprio tempo e nas instituições sociais dominantes. O trecho destacado acima se encontra na seção "Desenvolvimento", do livro-poema. Cabe lembrar que a obra inteira tematiza a vida, o cotidiano e a história durante o período da ditadura militar, fazendo referência direta a inúmeros acontecimentos e figuras da época. Por conta da extensão do poema, que inviabilizaria a sua publicação na íntegra, foram selecionados apenas alguns trechos para compor o Memorial Poético dos Anos de Chumbo.