XXI
Exilado na morte guevarina
na morte guerrilheira
na morte dos soldados
que nos combates morreram
na morte da moça libanesa
sob as marquises, em Beirute
na morte legisferada nos subúrbios
de Soweto, em Johannesburg
na morte dos estudantes massacrados
linchados
fuzilados
enforcados
queimados
no campus da Universidade de Thammasat, na Tailândia
na morte em cada casa, em cada esquina, em cada poste
em cada escada, em cada escola, em cada fábrica
em cada porto, em cada parque
em cada quarto de dormir
entre os fios de uma noite longa
e sem amanhecer
para quase um milhão de vidas na Indonésia
na morte do preso em qualquer parte
onde querer a liberdade é crime
na morte lumumbense
em quase todos os portais de África
na morte solta em Buenos Aires ou
atrelada na voz eletrônica da CIA
na morte que chegou
pela janela estilhaçada
do Palácio de la Moneda
(a mão allendiana se firmando
pela derradeira vez no gatilho
de uma paixão do tamanho da história)
na morte pinochetada até o final
de Eliezer Neftali Ricardo Rayes y Basalto,
aquele que não morre mais porque
os sempre jovens o chamam carinhosamente de
Neruda
na morte brasileira
de Herzog ou de Rubem Paiva
ou de José ou de João
que morreram porque
repetiam não
na morte em jeito de martírio
do padre Penido com a sua voz de lírio
a lembrar a paz em mato grosso
na morte dos que morreram
sem saber por quê
e na morte mais que a morte
dos que pensavam saber
na morte da morte que não chega
da alienação que vive dessas mortes todas
Comentário do pesquisador
Esse trecho pertence ao longuíssimo poema de 88 páginas, publicado em 1977, intitulado "Canção do exílio aqui ou Alguns elementos para o inventário de uma geração nesta cidade do Rio de Janeiro". Todo o texto se ergue a partir de uma construção paralelística em que todos os versos se iniciam com as mesmas palavras "Exilado no/a", que indicam a condição de estranhamento e deslocamento do poeta frente ao seu tempo. Como apontado por Alceu Amoroso Lima (1977), no prefácio do próprio livro que abriga o poema, não se trata de um exílio espacial, mas de um exílio no próprio tempo e nas instituições sociais dominantes. O trecho destacado acima se encontra na seção "Desenvolvimento" do livro-poema. Cabe lembrar que a obra inteira tematiza a vida, o cotidiano e a história durante o período da ditadura militar, fazendo referência direta a inúmeros acontecimentos e figuras da época. Por conta da extensão do poema, que inviabilizaria a sua publicação na íntegra, foram selecionados apenas alguns trechos para compor o Memorial Poético dos Anos de Chumbo.