Salmo de abril em São Paulo

Pedro Casaldáliga

       Salmo de abril em São Paulo

 

 

Quaresmeiras em flor, bandeiras cálidas,

        verdade rosa e lilás,

velam junto ao tingimento das frias bandeiras

ao pé dos monstruosos caixões de cimento.

Elas vencem a névoa do medo persistente

e salvam, com a graça de seus pequenos sorrisos,

as pressas dos homens, levados pelas máquinas,

o pesadelo da cidade violenta,

a maldição do mundo.

 

O metrô de São Paulo me leva,

  feito um túnel de anônimas perguntas,

luta adentro.

(O metrô de Madri, roda de fiar das minhas noites,

inflamadas, regressava, finalmente, a Buen Suceso).

 

Caminhos, os sinais de trânsito, piscam o olho verde.

Piscam o olho vermelho dos riscos,

 da vida.

(Pelos barros e pastos, integrando cores,

pela minha ampla Amazônia,

o arco íris abençoava a tarde,

sinal de novas alianças.

Noé o contemplava com os meus olhos,

   um pouco mais maduros).

 

Três dias de cansaço

— a cada Jonas a sua Nínive —,

toda uma vida se indo, chamada.

Mas o verde invadia a terra e o desejo veemente,

e as garças me davam sua lição:

   — Ainda

é possível ser livres!

 

Na cidade, perdidos eu e o Teu Nome,

o mundo é tão pequeno como um ninho esquecido,

tão triste como um pássaro sem asas nem gorjeios.

Mas as Tuas Asas cobrem sua chorada miséria,

 minha adormecida esperança!

 

Em Taboão da Serra

a juventude ensaia

morte e eucaristia.

As rosas da Serra, desfolhando-se, tombam

suas redomas cansadas.

Maria Liliane entregou à morte sua rosa prematura.

Cantam os companheiros, com Milton Nascimento:

"Amigo é coisa (amigos)

de se guardar

       debaixo

de sete chaves (livres)

 dentro do coração…"

Nunca debaixo de uma lousa fria, replica o Evangelho.

— Lázaro, Liliane, saiam para fora!

 

Com o vinho da missa, beberam muitos vinhos,

    em seus refreados sonhos,

estes padres alcoólatras que agora

pastam, como cordeiros, a vergonha vencida.

Duval, o chansonier,

sonhou também, um dia (muitas noites),

em sua petite tête e seu coração grande,

a lua e le grand ciel

e agora nos surpreende, com todo seu violão de joelhos,

sabendo mais que nunca, longe de qualquer palco,

que o Senhor virá de novo, que il l'a promis,

que il reviendra la nuit qu'on n'l'attend pas…!

 

As araras tremem — como eu, deportadas —

do frio de São Paulo, do frio deste mundo.

"É inverno na Igreja", advertia Karl Rahner,

   fazendo testamento de profeta.

(E o frio é a tristeza do Mundo,

    e o inverno

é pecado na Igreja que fez do Espírito brasa).

— O que você está fazendo agora?

perguntava o papa (inquisidor? benevolente?).

Respondia o teólogo (evasivo? magistral?):

— Eu me preparo para viver o grande Encontro.

E aos seus oitenta abris, bem pensados,

ouvinte do Mistério na Palavra,

mergulhou no Futuro total.

 

Abril portarà encara, per les nostres carenes,

    els gonfanons florits?

Les roses de Sant Jordi besaran els timbals, encara joves,

o s'esfereiran pels dracs de tota mena?

A Montserrat, l'abril quin virolai hi canta?

Com sabrá celebrar la primavera

el meu enfeinat Poble?

Les roses i l'abril, els fulls, les fulles,

els libres que embreçolen la meva saviesa,

els libres que festejo, tants, quimèrics,

els libres que em fan pare…

les roses que em fan nen immarcescible.

 

La mare ja no hi és a Catalunya,

  ja es a dalt de Casa.

 

Ginesta catalana, groga de tants records,

què hi fas ací, paulista?

 

Em São Miguel Paulista mais dois homens reclamam,

com o título póstumo de seu sangue estendido,

a terra que o latifúndio furta deles,

a casa que a cidade sitiada nega, excesso de cobiças.

 

Floresta de cartazes mostra pelas ruas o abc da fome:

— "Os professores também querem comer".

"Diretas!".

"Diretas já!", gritam todos os muros,

        derramando impaciência.

O comércio apregoa

    uma páscoa de ovos

    de chocolate (amargo

para as outras crianças).

Chamuscam, pensa, seus dólares com os pés?

As greves paralisam as máquinas dos lucros homicidas. Em vão?

Será que em vão estudam esses sindicalistas,

   acossados por leis e por arbítrios,

a auto-gestão, a autonomia, o Povo?

Geraldo, em Santarém, arde, como uma oferenda,

 (com os ossos roídos), na forja.

Pela madeira nobre do lábio mentuktire

   — palavra de verdade grafada em fogo —

a Ameríndia reclama, do Xingu irredento:

— "Devolva-nos a terra, respeitem nossa paz,

  e faremos com vocês a grande festa.

19 de abril, Dia do Índio!

 

"Cabo Anselmo (ex-Nordeste, ex-Marinha,

 ex-Guerrilha,

    ex-Traição)

    contra tudo".

Esses cabos-fantasmas, os comandantes-zero,

não contam com o Povo!

 

Por que 9 por cento das crianças ainda morrem

"antes do tempo", Santo Padre Bartolomé de las Casas?

Genocida e impune, Reagan mina, nos portos,

a núbil liberdade da Nicarágua

onde nossos mares, recobrados, já bebiam

sua sede adolescente.

 

Arde o Líbano e morrem os penúltimos cedros.

 

Morrem os palestinos, Palestino!

 

Arde na Índia o coração de Gandhi

    (inutilmente manso?).

 

O Chile de Neruda (inutilmente feroz?)

quer destroçar aos gritos sua tumba interminável.

 

… Por que semearei versos

 diante deste Mundo?

 

Bispo, e no entanto feito um menino.

Poeta, e simplesmente como um homem.

Sempre um pouco na solitária companhia.

Sempre um pouco estrangeiro em toda parte.

Como uma quaresmeira, lilás e rosa,

florida de nostalgia, florida de Evangelho?

 

Rahner disse. E já não há mais lições:

— O cume da minha vida ainda está por chegar:

é o abismo

do Mistério de Deus

onde nos despenhamos

livres enfim,

   morrendo…

 

Capitulo diante de Ti, o Deus, Inominado,

  Maior sempre!

"Solitários estranhos" vamos rumo ao Teu encontro,

Sentido da sede de todos os sentidos!

Capitulo diante de Ti,

  eu, abril humano, louca esperança menina,

  oh Deus, minha Primavera,

  Abril do Mundo inteiro,

  Deus já para sempre Humano!

 

 

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— Colofão

Coordenação

Marcelo Ferraz (UFG/CNPq)

Nelson Martinelli Filho (IFES/UFES/CNPq)

Wilberth Salgueiro (UFES/CNPq)

Bolsistas de apoio técnico (FAPES)

Juliana Celestino

Valéria Goldner Anchesqui

Bolsistas de pós-doutorado (CNPq)

Camila Hespanhol Peruchi

Rafael Fava Belúzio

Pesquisadores/as vinculados/as

Abílio Pacheco de Souza (UNIFESSPA)

Ana Clara Magalhães (UnB)

Cleidson Frisso Braz (Doutorando UFES)

Cristiano Augusto da Silva (UESC)

Diana Junkes (UFSCar)

Fabíola Padilha (UFES)

Francielle Villaça (Mestranda UFES)

Henrique Marques Samyn (UERJ)

Marcelo Paiva de Souza (UFPR/CNPq)

Mariane Tavares (Pós-doutoranda UFES)

Patrícia Marcondes de Barros (UEL)

Susana Souto Silva (UFAL)

Weverson Dadalto (IFES)

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