POEMA DE QUARTO CENTENÁRIO
Para Astrojildo Pereira
Olho longamente num jornal
que serve de correio da manhã
a fotografia do escritor
num cárcere do Rio de Janeiro.
De tanta doçura,
parece a foto de um adolescente.
Recordo que muitas vezes lhe vi
brincar no olhar um alegre passarinho,
um arabesco de amor no azul aberto,
o terno gosto da alegria humana.
Mas já está com 74 anos o escritor,
o escritor preso.
Está preso porque provou
do mundo que lhe coube,
e achou o mundo amargo
e um tanto podre.
Continuo olhando no jornal
a fotografia do grande machadiano
sentado altivo no catre,
o seu perfil sereno
e malferido
na dor da biblioteca devassada,
o olhar cravado límpido na vida
consumida na construção do amor,
esse poder imenso de canção
de amanhecer na boca anoitecida.
Queima demais a brasa desta foto:
brasa de incêndios, frágua da manhã.
É preciso fazer alguma coisa,
varar no escuro um rumo de meninos,
inventar um navio de amapolas,
aprender outra vez a soletrar,
abrir os alicerces do arco-íris,
é preciso fazer alguma coisa
para lavar a vida degradada.
Tudo porém depende de um major.
Porque perante vozes que se ergueram,
os altos fabricantes de justiça,
que decidem de sortes e destinos,
devolveram-lhe todos o direito
de ser dentro da lei um homem livre.
Sucede que o major disse que não.
O major simplesmente diz que não,
e não sucede nada que escalavre
o medo enfurecido, salvo o vento
que lava livre a mágoa da cidade
heróica e leal de São Sebastião
na festa do seu quarto centenário.
Santiago do Chile,
noite de ano novo, 1965.