POEMA DE 22 DE MARÇO
(Para Gerson e Maurício)
Ele caiu no asfalto
não pode reagir
faltou o pente sobressalente
faltou a cobertura
faltou a sorte
faltou o ar.
Ele foi levado ainda com vida
dentro de um porta-malas
a camisa rasgada
a calça Lee suja de sangue.
Era preciso avisar Teresa
era preciso fingir serenidade no espelho
era preciso comer rápido o sanduíche de queijo
era preciso cobrir os pontos
era preciso esvaziar o aparelho
era necessário escravizar o medo
e domesticar o ódio.
Quando cheguei em casa era noite
vi as portas abertas
as lâmpadas acesas
as mariposas alertas
as certezas cobertas de poeira
a chave na janela
os cartazes que nos punham a cabeça à prêmio
e a chuva que caía no telhado
como os passos de pássaros
esparsos
E saí por aí, sozinho,
com as mãos nos bolsos
pensando no impasse da luta nas cidades
pensando no isolamento político
pensando na nossa situação
e no nosso despreparo,
me dividindo entre o esforço
de analisar as coisas com frieza
e a ânsia de encher de tiros
o primeiro camburão que passasse.
Adiei as reflexões maiores
adiei as conclusões mais penosas
visto que o cerco se fechava em meu redor
e um bom guerrilheiro
respeita sua própria paranoia
por uma questão de sobrevivência,
por uma questão de instinto.