OS MORTOS DO ARAGUAIA
Para Maurício Grabois
Homens e balas vazam
a floresta do temor:
caminho sem volta,
gentes sem nome,
expedição de esperança
abafada no tempo,
enquanto nas cidades
poucos sabem do acontecido.
O rio de sangue escorre
levando os corpos que flutuam
como balsas de carne,
que encalham pelas margens
alimentando os urubus,
peixes carnívoros,
regime infame,
generais antropófagos,
soldados possuídos
pelas lições da caserna
e que saem pela imensidão
saciando os instintos.
O rio com a navegação
de dor segue o curso
ininterrupto das águas
rubras em corredeiras
de lágrimas dos olhos dos sediciosos,
dos que se escondem
pelos matos,
pelas árvores,
pelas florestas,
procurando descobrir
o nome dos que se perderam
pelos caminhos difusos
e dos que não terão direito
à sepultura com o nome.
Matar,
morrer,
viver,
renascer no amanhã...
Círculo inevitável
que nos envolve a todos:
jovens,
velhos,
condenados,
procurados pelo crime
da cidadania perdida,
soterrada nos arrabaldes.
Os meninos corroídos
em busca da Sierra Maestra
levam no peito o destemor,
e na alma venturosa
o fogo consumidor
que alimenta os corpos
em busca da Liberdade.
Nas águas que lavam a terra
do coração do País,
os soldados disparam
as armas como quem faz
um juramento ao demo:
— Ninguém haverá de sobreviver,
ninguém resistirá ao tempo,
não haverá sepulcro,
nem cruz,
nem data,
nem Atestado de Óbito,
nem lembrança da história,
para se contar aos filhos,
aos netos,
aos que virão...
O rio leva a todos
a não se sabe onde,
e ninguém nunca descobrirá
o que houve ali um dia.
Todos os mortos serão esquecidos,
todos os tiros se perderão,
ninguém dirá se existiu rebeldia...
Se houve uma guerra,
ninguém a lerá nos livros;
se houve um combate,
ninguém aprenderá na escola;
se houve uma desgraça,
que marcou a ferro em fogo
o peito dos vencidos
junto com os derrotados,
será levada ao esquecimento.
O silêncio apagará a história;
nada se lerá nos jornais,
nada se verá na TV,
nada se ouvirá no rádio
porque o Araguaia será
uma aventura dos mortos.
Nos tribunais prostituídos,
dirão em voz alta os juízes
aos que se atreverem
a procurar por notícia
dos desaparecidos:
— Araguaia não existiu
além de um rio de lendas
e uma floresta de mistérios...
Mas o caudal de sangue
do coração do Brasil
não esquecerá os corpos,
que desceram boiando em viagem
que não se sabe para aonde.
O Araguaia resistirá
ao menos na imaginação dos poetas...
Rio de Janeiro, 19.12.73