OS MENINOS COM ESTILINGUES
Os meninos com estilingues
enfrentam os soldados
com as armas devastadoras.
Pedras,
paus,
coquetéis
contra as couraças blindadas
dos tanques em barricadas,
enquanto as bolinhas de gude
deixam o regimento
de pernas ao ar
em plena avenida,
diante dos generais:
—— Meninos atrevidos!
—— Nós os mandaremos ao inferno!
—— Nós arrancaremos suas unhas!
—— Nós os deixaremos nas solitárias!
—— Nós os faremos rastejar!
—— Nós os jogaremos ao mar!
—— Nós os torturaremos até à morte!
—— Nós traspassaremos seus sonhos!
—— Nós impediremos sua história!
—— Nós os mataremos aos poucos!
Os deuses da inquietação,
que sopraram em Cristo
a voluntariedade dos anos,
foram os mesmos a soprar
o sangue em pulsação
nas veias dos venturosos,
peitos prontos para enfrentar
os fantasmas pelas trevas
sem se importar com o que haverá
de vir sobre os vinte anos:
—— Sejamos como as tempestades
que atormentam os navegantes...
—— Sejamos como os conquistadores
que não temem o desconhecido...
—— Sejamos como as borboletas
que não temem os caçadores...,
gritam com todas as forças
de seus anos de rebeldia,
mesmo que muitos nem ao menos
possam dobrar a primeira esquina,
mesmo que nem ao menos
tentem transpor o primeiro obstáculo,
mesmo que nem ao menos
consigam o direito à sepultura.
Gritam com todas as convicções
que lhes alimentam a alma,
gritam,
gritam,
gritam
na Avenida Rio Branco,
na Praça da Bandeira,
na Lapa,
na Cinelândia,
na Praia do Flamengo,
em todos os cantos,
e deixam escorrer os veios
de insubordinação
e resistência,
mesmo que ninguém possa
ouvir-lhes as palavras ao vento
entrecortadas pela aflição,
frente os infames assassinos.
Os deuses da juventude
mandam anjos alados
fustigar os corações
dos venturosos neste tempo:
—— Despertem, cidadãos do mundo!
—— Nós os alimentaremos com a esperança!
—— Nós os encheremos de vida!
—— Nós os faremos apaixonados!
—— Nós os guiaremos nas trevas!
—— Nós os manteremos em prontidão!
—— Nós os carregaremos de energia!
—— Nós os proviremos de luz própria!
—— Nós os invadiremos com a Liberdade!
No outro dia, a cidade
pára a ouvir
os generais dando ordens
aos soldados que invadem
as ruas,
os becos,
as praças,
enquanto a multidão faz de conta
que nada sabe,
nada ouve,
nada vê
mais do que a um palmo
além do nariz:
—— Matem-os com suas armas!
—— Matem-os com sua ira!
—— Matem-os, é uma Ordem!
E os meninos enfrentam
os tanques blindados com a coragem,
tiros contra coquetéis,
tanques contra paus,
pedras contra os regimentos,
bolinhas de gude contra os cascos
dos cavalos que relincham
sob a fúria do regime:
—— Meninos miseráveis,
levem consigo nossa praga
para todas as gerações!
Os que virão daqui a um século
ainda enfrentarão o infortúnio
das palavras dos generais
contra os infantes do mundo:
—— Nunca mais terão direito
à voluntariedade dos anos
nem ao remanso das horas...
Os meninos com estilingues
enfrentam o destino de hoje,
quando nem ao menos viveram
os vinte primeiros anos
e já querem derrubar o gigante
com as fundas que arremessam
pedras no longe do tempo.
Meninos com estilingues,
vos saúdo pela coragem
com esta canção impossível.
Meninos com estilingues,
vos mando esta mensagem.
Meninos com estilingues,
vos deixo meu testemunho:
—— Vossa glória será eterna...
Ponte Nova-MG, 23.5.70