O MURO
(PPSP, 1976) ...E quando a terra que nutria o sonho e o
cristal, exausta se entregou às fogueiras
do sol e do deserto, e os movimentos da vida
escassearam, e a sombra dos homens, porque
já então éramos apenas sombras, foi buscando
esse tom cinza que trazemos agora, cresceu o
Muro. Não em altura, que já então era alto o
suficiente para tocar o telhado sujo da noite
e roubar-nos completamente o horizonte, mas
em volume, em espessura, sufocando com sua
pedra e sua cinza o espaço cobrado pelo corpo.
O muro abandonou seus alicerces. Dotou-se de
raízes como cercas-vivas. Não para fixar-se à
terra, mas para sugar dela a força que nos mantinha
pulsando. Não para elaborar flores, como a
árvore sem saber as elabora, mas para alimentar
sua armadura de pedras e tristezas. Avançou
sobre nós compacto e turvo. Devorou o corpo dos
anciãos, dissolveu com seu fogo o ar que respirávamos.
A cada manhã conferíamos um território a menos:
mais escasso o corredor, mais breve o dia,
mais estreito o catre. Tudo se impregnara da
substância do muro. Tudo se cerrara. Os sapatos
recusando caminhos, a garganta retendo palavras,
as portas, aos poucos, ganhando a feição de paredes,
as janelas, sempre fechadas, desde que nascera o
muro, o tempo as desfigurara em travas de ferro
e agonia. Passamos a carregar o muro nos tornozelos,
nos pulsos, a sonhar com o muro, a enxergar o muro
no rosto das sentinelas, nos olhos de nossos filhos...
Comentário do pesquisador
Pedro Tierra é pseudônimo de Hamilton Pereira da Silva. A segunda edição de “Poemas do povo da noite” (São Paulo, Fundação Perseu Abramo e Publisher Brasil, 2009) inclui o livro “Água de rebelião”, publicado originalmente em 1983. No texto introdutório da edição de 2009, intitulado “Explicação necessária”, Pedro Tierra (Hamilton Pereira da Silva) informa: “Os poemas aqui reunidos foram escritos durante os cinco anos de prisão – de 1972 a 1977 – e publicados em volumes separados: Poemas do povo da noite (Ed. Livramento, S. Paulo, 1979), Água de Rebelião (Ed. Vozes, Petrópolis, 1983)” (2009, p. 19). Após a reprodução de ilustrações de Cerezo Barredo Dial, que constam na primeira edição do livro, a segunda edição apresenta uma dedicatória: “Estes poemas permanecerão ardendo para guardar a memória de Maria Augusta Thomaz e Márcio Beck Machado, assassinados pelos carrascos da ditadura enquanto dormiam”. Logo a seguir, há uma explicação: “Estes poemas tratam de homens reais, de torturas reais, de assassinatos reais ainda impunes” (TIERRA, 2009, p. 169).