O ENFORCADO
À memória de Tiradentes
Que corpo inerte é esse
que flutuou no ar como um pêndulo,
fazendo calar os conjurados
que nas noites em trevas
saíam pelas ruas de água a correr no meio
e pedras lisas de se pisar
a conspirar contra o regime?
Braços,
cabeças
e pernas
dilacerados pelas Minas
em escoriações e marcas
de suplício com os cães
vadios a lamber o sangue
que se esvaía pelos troncos
ainda com os grilhões
de ferro batido na forja,
como uma ameaça perene.
Que corpo feito em pedaços é esse
arrastado pelas praças
com tanta fúria,
tanto ódio,
pelos soldados da Coroa
sobre a cabeça de um Rei
pelas cercanias distantes
que estendera além-mar
os domínios de homens
e glebas sem fim?
Gritos abafados de dor,
espadas brilhando ao sol,
carrascos mostrando em triunfo
aquele ser mutilado,
exemplo aos que tentassem
repetir a rebeldia
da Independência esperada.
Que corpo esquartejado é esse
que assumiu para si
toda a culpa pelo crime
do amor sublime à pátria
que amanhecia no horizonte
das belas serras das Gerais,
partindo algemas e grilhetas
diante dos algozes,
como um Cristo recrucificado
arrastando a sua sina
pelos séculos de História,
como um mártir da Liberdade?
Que homem privado da vida é esse
que veio da Vila Rica,
das bandas das Alterosas,
onde semeara a revolta
do povo contra a tirania
naquele Brasil menino,
como a anunciar um grito,
às margens do Ipiranga,
que mais tarde ecoaria
pela vastidão dos mares?
Que homem abatido a ferros é esse,
dividido em partes
pelos assassinos sanguinários,
dilacerado em sua esperança,
arruinado em sua causa,
desgraçado em seu destino,
diante dos olhos do povo
da cidade de São Sebastião,
também mártir de seu tempo
ainda com as flechas
traspassadas nas entranhas?
Ninguém conseguiu dissuadi-lo
de trazer para os ombros
o peso da responsabilidade
da rebeldia inconfidente,
obstinação
e coragem
frente o cadafalso.
Nem lhe passou pela cabeça
nenhum pedido de clemência
para se humilhar em vida
diante da morte sublime
da luta pela pátria livre.
Que homem esvaído é esse
que escreveu sua história
na terra que lhe deu o direito
à cidadania sonhada
e negou-lhe os anseios,
e foi depois elevado
a patrono de seus assassinos,
soldados que ainda hoje
esquartejam outros meninos,
centenas de seguidores,
guerreiros-infantes pelas trevas
da mesma causa perdida
da luta pela Liberdade?
Que homem enforcado é esse
que ainda flutua nos ares
como um pêndulo indelével,
diante da ação do tempo,
realizando pelos séculos
movimentos de rebeldia
pelo direito à vida,
esquartejado em praça pública
e transformado em símbolo
pelos próprios carrascos?
Que homem com uma corda é esse
que vem do longe do tempo
como um exemplo de coragem
e um alerta ao amanhã?
São Mateus-ES, 22.10.68