I
Exilado no copo que quebrou
na criança que morreu
no som que se calou
Exilado, o poeta
na distância que não percorreu
na revolução que não deflagrou
nos amigos que não teve
nas mulheres que não amou
nos porres que não tomou
nos poemas que não fez
nos inimigos que não venceu
nos homens que não salvou
nos muros que não saltou
nas lágrimas que não chorou
nas guerras em que não esteve
nas flores que não plantou
nas frases que não disse
nas florestas que não derrubou
nas luzes que não acendeu
nas coisas que não inventou
nas pontes que não estendeu
nos rios que não cruzou
Exilado no beijo que não beijou
porque as bocas se faltaram
no instante mesmo do amor.
Comentário do pesquisador
Este trecho pertence ao longuíssimo poema de 88 páginas, publicado em 1977, intitulado "Canção do exílio aqui ou Alguns elementos para o inventário de uma geração nesta cidade do Rio de Janeiro". Todo o texto se ergue a partir de uma construção paralelística em que todos os versos se iniciam com as mesmas palavras "Exilado no/a", que indicam a condição de estranhamento e deslocamento do poeta frente ao seu tempo. Como apontado por Alceu Amoroso Lima (1977), no prefácio do próprio livro que abriga o poema, não se trata de um exílio espacial, mas de um exílio no próprio tempo e nas instituições sociais dominantes. O trecho destacado acima se encontra na seção "Desenvolvimento" do livro-poema. Cabe lembrar que a obra inteira tematiza a vida, o cotidiano e a história durante o período da ditadura militar, fazendo referência direta a inúmeros acontecimentos e figuras da época. Por conta da extensão do poema que inviabilizaria a sua publicação na íntegra, foram selecionados apenas alguns trechos para compor o Memorial Poético dos Anos de Chumbo.