CIDADE DE PEDRA
A cidade de concreto
debruça sua fúria
sobre a vida das pessoas,
enquanto os corações venturosos
batem em pulsações
jorrando pelo asfalto
rios rubros arteriais
que escorrem pela rigidez
da face fria do mármore.
Os ombros de chumbo
sustentam o peso das dores,
edifícios enfiam as pontas
nas nuvens cinza que passam,
cada um com a imponência
vertical de chegar
ao ponto mais alto
para olhar as massas aos pés,
cada um com a ânsia
de exploração das pessoas,
cada um com o anúncio
da felicidade concreta.
A cidade de cimento
rasga o seio da terra
deixando o sangue seco
dos operários que enterram
o sonho acalentado,
frente os que sustentam
o progresso passeando
o regime sobre os corpos.
Das entranhas saem gemidos
de angústia e aflição,
mas os bate-estacas trabalham
com as porradas surdas
abafando os condenados.
As noites debruçam véus
feito manchetes dos jornais
sobre todos os esvaídos,
alimentando as horas
do Milagre Brasileiro.
Deuses de pedra,
anjos de cimento,
sepulturas de mármore,
corações de ferro,
é a cidade com sua roupagem de gládio
invadindo a paisagem,
como um monstro devastador
que passa por sobre os vencidos.
Arquitetos riscam formas
geométricas com os dedos,
enquanto escondo-me
na noite sob sete cobertores
e penso nas prostitutas do Porto,
nas da Pinto de Azevedo,
nas da Praça Mauá,
sob os escombros da nova Ordem…
Um cão vadio procura
fugir por uma porta,
uma mulher chora
debruçada no balaústre,
poetas deixam cair as pálpebras
sobre os olhos úmidos das trevas,
enquanto um velho octogenário,
sentado no limiar da vida,
escarra sobre os pés:
— É o azougue…
— É o azougue…
— É o azougue…
Mendigos procuram vaga-lumes
que faíscam nas noites,
e um menino morto
sob uma folha de jornal
sonha com um lar,
uma casa,
um teto…
A cidade cresce com os pobres
povoando os becos sujos,
enquanto as máquinas não param,
rasgando o seio
da terra com a fúria do progresso
e devorando as lembranças
dos velhos álbuns de fotografias.
Ninguém se lembra da rua,
do vizinho defronte,
do corpo sem sobressalto
à sombra das árvores
que desaparecem das memórias.
Enquanto isso, os levados ao esquecimento
enrolam os sonhos
na sarjeta do tempo,
ao relento da vida…
É a cidade de pedra
que constrói sepulturas
de concreto
e ferro
para atender à demanda
imobiliária do regime.
Rio de Janeiro, 6.6.72