Canção do exílio mais recente

Affonso Romano de Sant'Anna

CANÇÃO DO EXÍLIO MAIS

RECENTE

para Fernando Gabeira

 

   1

 

Não ter um país

a essa altura da vida,

a essa altura da história,

a essa altura de mim,

– e o que pode haver de desolado.

 

É o que de mais atordoante

pode acontecer ao pássaro e ao barco

    presos desde sempre à linha do horizonte.

 

    Desde menino

    previvendo perdas e ansiedades

    admitia

 as mobílias em mudança, galinhas

    mortas na cozinha, o incêndio em plena casa

    e a infância com os amigos se afogando.

 

Mas sobre país

   eu pensava ser como pai e mãe: pra sempre.

 

País

    era o quintal e a horta a alimentar a mim

    e aos filhos com a sempre zelosa sopa do jantar.

País

    era como a Amazônia: desconhecidamente da gente

    ou como o São Francisco: inteiramente pobre e nosso.

 

Hoje

    meu pai, cansado, já se foi

    minha mãe, com fé, já se prepara

  e a horta

    se não se deu às pragas

    – já foi toda cimentada.

Meus irmãos estão dispersos. Já não conversamos

como anjos adolescentes

  debruçados sobre o sexo das tardes.

 

No entanto, há muito elaboro as perdas

e sigo a metamorfose das nuvens. Vi os corpos

mais amados se escoando no lençol

depois de ter sentido a fé fanar-se, digamos:

   – ao mais leve frêmito carnal.

 

E após a tensa geografia caseira

com pai e mãe, seis filhos na mesma mesa e igreja,

   ano após ano, pasmo percebo

   que meus irmãos iam-se partindo

   como aqueles que, mais tarde, num gesto guerrilheiro

   foram domar o dragão do castelo e a cidadela

   a tropeçar nas celas e fronteiras

    e a fenecer exílios e quimeras.

 

   2

 

Ter ou não ter: – eis o sertão

  a lei do cão, de Lampião

– embora Padinho Cícero e seu sermão.

Que tudo é deles

que me têm, detêm, retêm

o meu direito e o passaporte,

a identidade e os impostos

e o medo com que abro a porta,

 

que tudo é deles:

o arado e a bosta do prado,

a colheita e o mofo do pão,

o berro-boi contido e o ferro em brasa

– com que me marcam a canção,

 

que tudo é deles:

os rios com seus mangues,

os picos da neblina assassina,

os pedágios da impotência

e a inclemência nordestina.

 

País. Como encontrar-se num,

se mesmo o nosso quarto (antigo exílio)

a militar família penetra e fuxica

a vasculhar diários e delírios?

Como encontrar-se num

 

se a natureza do corpo

– paisagem antiga e íntima –

a milícia dos tratores desmonta e violenta

na fabril poluição?

 

Será que sou um palestino? alguém que já perdeu

de antemão todas as guerras? ou será que sou aqueles alemães

que vi nas margens do Reno

   – cuidando de suas hortas e flores,

e sobre as derrotas e canteiros

vão refazendo seus filhos por cima da cicatriz

a carregar a encapotada alma

    viva-e-torta?

 

Ter ou não ter, eis meu brasão,

ou refrão dessa impotente canção.

    Se trágico é o poder

    – o não poder

       sempre foi triste.

 

Mas não posso, é proibido

não ter um país, dizem-me na alfândega.

No entanto, este não em serve, como não me serviram

os outros, quando os habitei maravilhado entre castelos

e vitrinas, entre hambúrgueres e neblinas, entre as coxas

claras das donzelas dos contos da carochinha.

 

Este não me serve, assim dessa maneira,

a me impingirem idéias mortas, me vestirem camisas-de-força,

 [fraques e cartolas tolas

– e eu sabendo que o defunto é bem maior.

 

– Viver é isso? – É descobrir na pele dobras

de paisagens novas, e lá fora ir perdendo a vista antiga?

– É renunciar ao ontem, refazer o ato?

e saber que em nosso corpo e país

 – o amanhã é um fogo-fátuo?

 

E eu aqui, no nenhum-desse-lugar, estrangeiro

exilando-me ao revés, vendo o passaporte roto de traças

que transferem

para o nada

 a carcomida face.

 

   3

 

Mas, às vezes, em pleno tédio, em calmaria

    – ao largo

fico como os parvos navegantes, à mercê dos fados

sonhando no astrolábio

  chegar às Índias pelo avesso.

À espera

  que um vento louco me enfune as pandas velas

desoriente-me a nau e o sangue marinheiro

  e eu chegue à terra santa e profana

onde me esperam as tribos com festões e danças.

 

  E eu

      jogando ao mar a cruz e a espada

correndo para a praia

    peça para ser o menor deles

e me aquecer à luz do fogo

 em meio à taba

e transformar meu vil degredo

    – em eterna festa.

 

 

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