A SEDE DA UNE
As paredes desbotadas
escondem velhas emoções
vividas por gentes com sonhos
embrulhados em papel celofane,
que caminharam sobre o meio-fio
deixando marcas para os coturnos
lhes procurarem um dia.
Outras com os temores
espiam mil vezes a avenida
com os carros convidando-as
para a morte acidental
com a mesma versão
oficial que omite
a mão infame do carrasco.
Prostro-me do outro lado
a olhar o velho prédio
incólume como um alcantil
encravado no coração
da praia submersa
na penumbra em transmutação.
Ainda vejo os fantasmas
dos que deixaram as almas
perdidas em nosso tempo,
vagando pelas esquinas
em busca dos anseios.
As janelas lacradas
nunca mais foram abertas;
fecharam-se em pesadelos
depois daquele 28 de março,
em que os braços carregaram
o corpo ferido de Edson,
do Calabouço ao esquecimento
compulsório em nossas vidas.
As mesmas portas tatuadas
de corações e iniciais
nunca mais deram passagem
aqueles infantes febris
em gritos e palavras
de ordem aos ares
carregados de chumbo
derretido sobre os corpos,
sangue pelos esgotos,
pernas fugindo das bombas,
tanques blindados nas ruas
abrindo passagem ao regimento
de cavalaria que defecava
sobre a carne dos estendidos.
Mães em luto gritavam:
— Poderia ser seu filho!
— Poderia ser seu filho!
— Poderia ser seu filho!
A completa escuridão
da noite fria de outono
cobre com um manto
as recordações possíveis.
Passam fantasmas tristonhos
apontando para o velho prédio
com os dedos descarnados.
São dezenas,
são centenas,
são milhares
de meninos traspassados
que passeiam procurando
fragmentos de vidas
esquecidas naquela sede,
que se desfizeram em imagens
sob os escombros do tempo
que aterra os mortais.
Olhos passeiam assustados
por entre as árvores carregando
esperanças
e pesadelos.
Os corpos curvados-genuflexos,
frente à truculência do algoz,
vão-se diluindo aos poucos
diante da indiferença
dos que passam despercebidos
daquela casa com os espíritos
revisitando-a eternamente.
Prostro-me do outro lado
juntando lembranças desgarradas
das silhuetas dos meninos,
diante das ruínas
com as gentes apressadas
indiferentes ao acontecido.
A velha sede da UNE,
com as paredes feridas,
esconde dezenas,
centenas,
milhares
de fantasmas de nosso tempo
que passeiam por entre os escombros.
Diante da sede da UNE,
ao menos em minha memória,
os estudantes ainda entoam
palavras contra o regime:
— Assassinos!
— Assassinos!
— Assassinos!
Rio de Janeiro, 18.12.72