O ASSASSINATO DA COMPANHEIRA OU
DAS PERSPECTIVAS E POSSIBILIDADES
DO QUE SERIA ZÉLIA
Era uma vez Zélia,
magra como carícia
de antenas enormes
saltando dos olhos mansos
para dançar na boca
de canto denso.
Humana, hu-ma-na
irmã
ímã
irmana
no passo rápido
flutuar de ansiedade,
no gesto suspeito
quase infância-bicho-papão
busca, busca, busca.
Ouve, Zélia:
— eu não cantava há luas e sóis
e você me desperta
nessa madrugada pesada.
Allende assassinado,
Neruda morto,
quantos escorrendo em sangue?
Onde está você?
Viva? Assassinada?
Ou sobrevives, ex-companheira,
Zélia mutilada
antenas massacradas
girando sem rumo
corpo-cadáver sem braços
angustiadas mãos sem dedos
loura cabeleira destroçada?
Nossos sonhos, nossos mundos,
nossas fugas por encontros.
Quando o reencontro?
Todos os caminhos levam ao túmulo.
E eu cavo, cavamos?,
rasgamos essa terra indócil
desbaratando a malha asfixiante.
Aranha morta.
A rota que o olhar imagina
e a certeza confirma
surge-ressurge.
Para suas antenas enormes,
seu passo ansioso,
gesto virgem.
Para você companheira,
ou para a...
Zélia,
o avião firmou as asas,
o sol nasceu antes,
inútil a rigidez do relógio.
Nos separam oito anos,
mais de dez mil quilômetros (dez?)
de marchas paralelas
ou o sempre.
Zélia vibrando,
dedos negros de tinta assustada
tatuando o muro quente,
madrugada fria,
mural de verdades.
Zélia,
diretora-responsável do Coruja,
nova-poeta-nova,
lâmina fria na veia sufocada,
soco no vazio imenso da angústia,
floresta compartimentada,
árvores acorrentadas.
Zélia cantando, dançando, rindo, chorando
his-té-ri-ca odiando,
amando
vivendo
conspirando...
Ha, ha, ha!
Incursa em todas as vogais e consoantes
dos artigos da lei de segurança monopolial.
Periculosa.
Ah, criminosa.
Stop em nome da lei,
convidada a prestar esclarecimentos de rotina,
— teje presa, Zélia.
No ritmo do trem,
filha nos braços,
vai ou vem, vem não vem, vai meu bem.
Esteve aqui semana passada,
vista em Niterói, cabelos pintados,
alcançou o Uruguai um pouco mais pálida,
tentou o Chile,
ganhou o mundo,
perdeu a vida?
Allende morre? Neruda?
Os chilenos? tiradentes brasileiros?
canecas nordestinos? balaios agredidos?
antonios conselheiros? praieiras sa-ne-a-das?
coluna Prestes exilada?
— eles desaparecem?
Morrem?
A muralha bombardeada sobrevive,
desmoronados tijolos da futura construção.
Esparramados nas calçadas,
escorrem pelas ruas
brotam nas gretas
infiltram a terra sedenta
ganham as veias pelos pés descalços,
entram nos calos das mãos,
contaminam lavouras.
Surto teimoso
amanhece os dias
anoitece tramando auroras
irriga,
chuva de sol fértil.
E rompe em verde
explode em flores e sementes
árvores libertadas
floresta unida
muralha reatada.
Esmagaram, fuzilaram, baniram,
prisão perpétua
para Zélia-câncer-monstruoso,
solerte destruidora de famílias,
polvo-daninho
de passos rápidos
palavras de faísca
— cuidado, inflamável!
Denunciem Zélia!
Zélia existe, é verdade isso.
Morta a tiros, sobrevive
possibilidade golpeada, ressurge.
Ouçam Zélia:
— A bala rebenta em vida,
a vida multiplicada
faz pontaria — precisa! —,
no alvo vital dos assassinos.
A vida entrincheirada
banida, proibida
atira
com armas várias
dragão de mil cabeças.
Venceviveremos.
(1973)