XXXVI
Exilado entre os nomes da carta 77 e na Praga de
Karel Kosik
ou no porta-aviões do Pentágono, com o seu rumo
sempre apontado para as nossas costas.
Exilado entre as 1046 penas em riste
nas longas asas da imaginação
ou da inteligência
querendo libertar-se em nossa terra.
Exilado no manifesto que não houve
em defesa da estatização, única via
para que a liberdade se engravide
descentralizando-se em comunidades
da vida possivelmente humana e simples.
Exilado nesses endolarados cofres da plutocracia
em que o lucro cada vez maior rumina
o solo brasileiro esquartejado em zonas.
Exilado no discurso em que se engana o povo.
Exilado na politicagem, essa escumalha que borra
o futuro no caderno íntimo da juventude.
Exilado no progresso moral ou na beleza humana
que não se elevam lado a lado com as ogivas
dos foguetes, ou com as torres de petróleo,
as tonelagens de aço, a altura das represas.
Exilado na espúria matemática dessas tecnocracias
em que o despertar do tempo é atraiçoado
sob lâmpadas frias em lugar de sol
(e assim a noite se fabrica
outra vez mais sem as cantigas
dos saltos qualitativos naturais
como a coloração da flora ou a
coreografia sem erros da fauna).
Exilado nas multinacionais e em seus dinheiros
a povoarem
sob o nome da liberdade proferido em vão
as nossas praças públicas
(onde a juventude morre sem saber que morre
para adubar o lucro que se quer sem fim).
Exilado na mocidade universitária, que é a chama
necessária para que haja luz nestes degraus
do tempo brasileiro a se querer no alto
cume da vida soberana e livre.
(Livros, eu peço livros de todo e qualquer credo
no homem como ser que ama e questiona
qualquer muro, qualquer distância, qualquer dor
colocados entre ele e o que sente
ou sabe ser realizações de amor).
Comentário do pesquisador
Esse trecho pertence ao longuíssimo poema de 88 páginas, publicado em 1977, intitulado "Canção do exílio aqui ou Alguns elementos para o inventário de uma geração nesta cidade do Rio de Janeiro". Todo o texto se ergue a partir de uma construção paralelística em que todos os versos se iniciam com as mesmas palavras "Exilado no/a", que indicam a condição de estranhamento e deslocamento do poeta frente ao seu tempo. Como apontado por Alceu Amoroso Lima (1977), no prefácio do próprio livro que abriga o poema, não se trata de um exílio espacial, mas de um exílio no próprio tempo e nas instituições sociais dominantes. O trecho destacado acima se encontra na seção "Desenvolvimento", do livro-poema. Cabe lembrar que a obra inteira tematiza a vida, o cotidiano e a história durante o período da ditadura militar, fazendo referência direta a inúmeros acontecimentos e figuras da época. Por conta da extensão do poema, que inviabilizaria a sua publicação na íntegra, foram selecionados apenas alguns trechos para compor o Memorial Poético dos Anos de Chumbo.