XXXIV
Exilado no palavrório opaco do fascismo
que nunca entendeu o ser das ruas
(como os rios, as ruas
não andam em linha reta
e isso define a sua beleza
igual ao voo dos pássaros
ou ao pé descalço do pescador
na areia em que o sol umedece
os ancestrais convites do mar
no começo de qualquer dia)
e que por não entender desliga-se da vida
—— alada em suas várias formas de amar ——
e se endurece, como o gelo que aprisiona
o peixe e as viagens do homem
em seu ser de gelo apenas, coisa
oposta a tudo que vive.
Exilado no oco disfarce de dizer-se repetidamente contra
o socialismo e seu sistema novo de pensar
sem dizer
sobre o três por quatro de tudo que é a desesperança
a favor de quê
esse ato de ser contra
justifica-se praticamente em cada casa
de cada homem brasileiro
nos seus atos de obter
independência, teto, pão e segurança.
Comentário do pesquisador
Estre trecho pertence ao longuíssimo poema de 88 páginas, publicado em 1977, intitulado "Canção do exílio aqui ou Alguns elementos para o inventário de uma geração nesta cidade do Rio de Janeiro". Todo o texto se ergue a partir de uma construção paralelística em que todos os versos se iniciam com as mesmas palavras "Exilado no/a", que indicam a condição de estranhamento e deslocamento do poeta frente ao seu tempo. Como apontado por Alceu Amoroso Lima (1977), no prefácio do próprio livro que abriga o poema, não se trata de um exílio espacial, mas de um exílio no próprio tempo e nas instituições sociais dominantes. O trecho destacado acima se encontra na seção "Desenvolvimento" do livro-poema. Cabe lembrar que a obra inteira tematiza a vida, o cotidiano e a história durante o período da ditadura militar, fazendo referência direta a inúmeros acontecimentos e figuras da época. Por conta da extensão do poema, que inviabilizaria a sua publicação na íntegra, foram selecionados apenas alguns trechos para compor o Memorial Poético dos Anos de Chumbo.