Em sonho me vi
debruçado no parapeito da ponte,
sobre o rio Itanhém.
Olhava as águas
esbarrando as margens,
corcoveando os rochedos,
polindo os seixos
e branqueando as areias.
A refração parecia
dirigida à procura
quando em verdade
a vista estava parada
e seu objeto se movimentava;
como se vê pelas lentes do microscópio,
ao rodar das manivelas.
Lá embaixo, os seixos rolando,
litos vários se formando,
e cardumes de peixinhos nadando,
aparentemente sem rumo,
ao sabor do plâncton invisível.
E mais abaixo,
no submundo das águas,
comendo a lama que as águas purificam,
ostras mil.
Eu não sou
um caçador de pérolas,
como o personagem de Steimbeck.
Jamais ousei quebrar uma ostra,
invadir sua intimidade e revirar suas entranhas,
à procura de sua valiosa excreta.
Apenas catava conchas nas praias.
Conchas anônimas, brilhantes,
brancas, coloridas, reluzentes,
apreciadas por crianças, viandantes
e turistas de veraneio.
Então me lembrei:
o Itanhém jorra no mar
e me pus a caminho da barra, pensando.
Essas ostras, caramujos e crustáceos,
não são as enguias teimosas do Cortázar,
nem os centenários sobrados de Alcobaça
são os milenares observatórios de Jaipur.
Que importa razões históricas
para as ostras, caramujos, enguias
e observadores ocasionais da ponte
ou das claraboias dos casarões ?
Apenas sabia
que estava a caminho do mar
e nisto estávamos todos juntos,
seguindo a maré.
Neste passeio imaginário,
estive em Caravelas, Ponta D'Areia,
Barra, Quitongo.
O Quitongo da minha adolescência!
E até no Prado soberbo.
Só não fui ao Iriri!
será praia ou será sertão?
Ouvi antes este nome
essa palavra lírica ri, ri, ri, riri, Iriri!
não sei não!
Será o Iriri
onde "canta, canta sabiá, canta, canta sofrê"?
ou lá só existe a "sabiá da praia
uma sanguínea e deslumbrante aurora"?
Uai, já ouvi este canto antes, mas onde?
Em Linhares, na Ilha Grande ou na Frei Caneca?
Ah! Que vontade de ir pro Iriri!
Comentário do pesquisador
O poema “Vontade de ir pro Iriri” integra o volume “Poemas (quebrados) do cárcere”, publicado por Gilney Amorim Viana em 2011. Na “apresentação do autor”, o poeta afirma: “Estes raros e quebrados poemas foram escritos na década passada, quando estive encarcerado pela ditadura militar. Acredito que refletem minhas afetividades, dúvidas existenciais, certezas políticas e ideológicas vividas naquele período” (2011, p. 9). Sobre a primeira parte do livro, na qual está inserido “Vontade de ir pro Iriri”, Gilney Viana informa: “Os primeiros poemas correspondem aos últimos anos de prisão (1977-1979), no Presídio Político do Rio de Janeiro, situado no complexo penitenciário da Rua Frei Caneca. A conjuntura política estava em mutação, o regime militar dava sinais de esgotamento, tanto no domínio econômico quanto no domínio político. Cresciam as manifestações sociais e políticas contra o regime, tornando inevitável a transição à democracia representativa. Clima de abertura política que envolvia a sociedade e, remotamente, o submundo das prisões. Reclusos, discriminados como terroristas, nós, presos políticos com condenações de longa duração, tentávamos nos fazer ouvir. E, pela primeira vez, ousamos pensar em liberdade, com ou sem Anistia, mas com dignidade humana e política” (211, p. 9).