UMA SÓ CARNE
“Por esta razão deixará o homem seu pai
e sua mãe, e se apegará à sua esposa,
e os dois serão uma só carne.”
Mateus
A mulher em lágrimas
chora por seu marido
que se foi de casa
levado pelos federais.
Foram horas de angústia,
foram dias de espera,
foram anos de procura
sem resposta,
sem certeza,
sem Justiça.
Aquela mulher em dor
procurou por todos os cantos
a notícia inutilmente:
— Onde está meu marido?
— Onde está meu marido?
— Onde está meu marido?
Seus cabelos cresceram,
os dentes cariaram,
as faces enrugaram,
os ombros caíram
com o peso da sina.
Ela saiu pelo mundo,
dormiu à sarjeta,
passou fome,
passou frio,
teve medo,
teve lepra,
teve gangrena,
calejou os pés nas pedras,
alimentou-se nas latas
de lixo para encontrar
a notícia procurada:
— Onde está meu marido?
— Onde está meu marido?
— Onde está meu marido?
Escreveu aos senhores
dos palácios do planalto
usando a tinta esvaída
das próprias veias em palavras;
fez promessa de subir
escadarias de joelhos
duas vezes por semana;
comeu a ponta dos dedos,
de nervosismo
e aflição;
teve ataques de loucura;
jogou pedra nas vidraças;
ficou na frente do quartel
com os joelhos genuflexos;
ameaçou atear fogo
no corpo de algodão;
cortar os pulsos com navalha;
jogar-se frente os carros;
atirar-se do viaduto;
mas de nada adiantou,
ainda carrega a agonia:
— Onde está meu marido?
— Onde está meu marido?
— Onde está meu marido?
Aquela mulher em luto
virou bicho,
virou fera,
pegou em arma de fogo,
foi viver em aparelhos,
exilou-se na Pátria,
entregou-se à mesma causa
de agonia
e sofrimento
dos que emprestam o nome
à Lista dos Desaparecidos.
Trocou o dia pela noite,
a cidadania pela fuga,
o medo pela coragem,
a insegurança pela rebeldia,
foi presa
e torturada,
bebeu querosene
e óleo diesel,
foi levada à solitária,
violentada várias vezes,
enfiaram-lhe rato no ânus
e baratas na vagina,
teve o sabugo das unhas
perfurado por alfinetes,
o bico dos seios arrancado
por dentes
e alicates,
levou choques no umbigo,
foi arrastada pelos cabelos,
mordida pelos cães,
pendurada no pau-de-arara,
mas até o último suspiro
teve na boca a pergunta
que nunca obteve resposta:
— Onde está meu marido?
— Onde está meu marido?
— Onde está meu marido?
Aquela mulher inerte
encontrou o mesmo destino
de quem tanto procurava,
na aventura da vida,
numa só carne de flagelo,
na mesma cova como indigente
sem direito à cruz,
sem sepultura,
sem nome.
Aquela mulher encontrou-se
finalmente com a sua metade
procurada pelos anos…
Rio de Janeiro, 7.10.73