Um homem pobre
A ferro e fogo
Se faz um homem
Quando ele é pobre.
A fome e logro,
Plaina e formão,
Faz-se um irmão,
Um irmão pobre.
Com uma vela
E uma sovela
Marca-se a cara,
Olho por olho,
Dente por dente.
A ferro quente
Marca-se a tara:
Um P de pobre.
A cavaleiro
Do chão poento
O seu nariz
Como um camelo
Comendo vento.
Com toda a força
Bate-se a forca
Do seu pescoço.
Com faca fina
Talha-se o ventre,
Mansa planura
De repentina
Ânsia: vazio
E desventura.
Com três facadas
Se faz o sexo,
Com três pontadas
Fundas, sem nexo.
A pontapés
São modeladas
As suas nádegas.
É vulnerável
Seu calcanhar.
Se perde um membro
Põe-se um espeque
No seu lugar.
Pernas cavadas
Pelas varizes
Como raízes
À flor da terra.
Seus pés são flores
Escalavradas.
Se for possível
Sejam flexíveis
Os seus joelhos.
Fígado, baço,
Rins de antimônio,
Pulmões de chumbo,
Olhos de fumo,
Enfim o homem
Química e mangue,
Robô sem rumo
De carne e sangue.
Enfim, a obra
Dos outros homens
Como uma cobra
Inspira, expira
O ar que sobra.
Para arremate
As ferramentas
Uma por uma:
Lima, verruma
Dão polimento;
Broca, alicate
Dão o contraste;
Torquês, guindaste
Dão movimento;
Mangual e freio
Dão-lhe o receio;
Leva-se ao torno,
Depois ao forno,
José, João,
Deram-lhe um nome,
Qual, pouco importa.
Com alguidar,
Folha de flandres,
Gamela torta,
Restos de mar,
Matam-lhe a fome
Do crescimento.
Fio de vento,
Teto de brasa,
Chão de relento,
Eis sua casa.
Embora magro
Parece inchado,
Eis o seu vício.
Morre-lhe o pai,
Morre-lhe o filho,
Não veste luto:
Falar à morte
Cada minuto
É seu ofício.
No ar se exala
Tudo o que fala.
Por onde pisa
Não há sapato.
Tudo o que cheira,
Vulgar olfato,
Cheira à tristeza
de uma toupeira.
Das galerias,
De pai a filho,
Herda a riqueza
Da silicose;
Se economiza
Febre reumática
Pode gastar
Tuberculose.
Estranho tato,
Tudo o que pega
Muda-se em lama.
Onde se deita
Chama de cama.
Cedo se estraga
Tudo o que ama.
Cedo se rasga
Tudo o que veste.
Cedo se despe
Da própria carne,
Do próprio nome.
Tudo o que come,
Raro apetite,
Sabe-lhe a fome.
Tudo o que ouve,
Houve ou não houve,
Tem o sentido
De ensurdecê-lo;
Raro desvelo
Dos outros homens.
Tudo o que é seu,
Ninho de sono,
Mina de cobre,
Roça de milho,
Coisas de pobre,
Tem outro dono.
Vive por dentro
Do lado externo.
De olhos abertos
Ou meio cego
Vê a vitrina
De luz marinha
Com seus eternos
Peixes, lagostas,
Gordas galinhas,
Leitões de crosta
Que se desata,
Cerejas rubras,
Cremes de prata.
A fome é sua.
No seu aquário
Da cor da lua
O cobertor
Espesso dorme;
Deus vela o sono
Do mostruário.
O frio é seu.
Não lhe pertencem
A relva, a graça
Dos chafarizes,
Banco de praça,
Flores da rua,
Sombra de parque,
Frescor de fonte.
O medo é seu.
Prisão é sua.
Em socavão,
Desvão de ponte,
Sob o pontão
Apodrecido,
Onde existir
Ângulo morto,
Rota catraia
De cais de porto,
Onde existir
Oco-de-pau,
Dura falésia
De rude praia,
Onde existir
Negra lacraia,
Feroz lacrau,
Bicho felpudo,
Onde houver tudo,
Rato, morcego,
Onde existir
O seu sossego
Cheio de medo,
Onde existir
Algum perigo
De se escalar,
Algum segredo
Para descer,
Onde a patrulha
Não atingir,
Onde o olhar
Do gavião
Não puder vê-lo,
Onde existir
Fétido cheiro,
No seu chiqueiro
O pobre irmão
Pode encostar
Sua cabeça,
Seu coração,
Pode apagar
A luz espessa
De seu olhar
De cão ou urso.
Um dia, morre.
Não tendo cova,
O bisturi
Faz seu discurso.
Comentário do pesquisador
O poema está presente no Memorial Poético dos Anos de Chumbo por entendermos que o gesto autoral de selecionar e recontextualizar gera camadas de sentido, o que faz com que o poema possa ser considerado como publicado – também – em 1966.