Um homem pobre

Paulo Mendes Campos

Um homem pobre

 

 

 

A ferro e fogo

Se faz um homem

Quando ele é pobre.

A fome e logro,

Plaina e formão,

Faz-se um irmão,

Um irmão pobre.

Com uma vela

E uma sovela

Marca-se a cara,

Olho por olho,

Dente por dente.

A ferro quente

Marca-se a tara:

Um P de pobre.

A cavaleiro

Do chão poento

O seu nariz

Como um camelo

Comendo vento.

Com toda a força

Bate-se a forca

Do seu pescoço.

Com faca fina

Talha-se o ventre,

Mansa planura

De repentina

Ânsia: vazio

E desventura.

Com três facadas

Se faz o sexo,

Com três pontadas

Fundas, sem nexo.

A pontapés

São modeladas

As suas nádegas.

É vulnerável

Seu calcanhar.

Se perde um membro

Põe-se um espeque

No seu lugar.

Pernas cavadas

Pelas varizes

Como raízes

À flor da terra.

Seus pés são flores

Escalavradas.

Se for possível

Sejam flexíveis

Os seus joelhos.

Fígado, baço,

Rins de antimônio,

Pulmões de chumbo,

Olhos de fumo,

Enfim o homem

Química e mangue,

Robô sem rumo

De carne e sangue.

Enfim, a obra

Dos outros homens

Como uma cobra

Inspira, expira

O ar que sobra.

Para arremate

As ferramentas

Uma por uma:

Lima, verruma

Dão polimento;

Broca, alicate

Dão o contraste;

Torquês, guindaste

Dão movimento;

Mangual e freio

Dão-lhe o receio;

Leva-se ao torno,

Depois ao forno,

José, João,

Deram-lhe um nome,

Qual, pouco importa.

Com alguidar,

Folha de flandres,

Gamela torta,

Restos de mar,

Matam-lhe a fome

Do crescimento.

Fio de vento,

Teto de brasa,

Chão de relento,

Eis sua casa.

Embora magro

Parece inchado,

Eis o seu vício.

Morre-lhe o pai,

Morre-lhe o filho,

Não veste luto:

Falar à morte

Cada minuto

É seu ofício.

No ar se exala

Tudo o que fala.

Por onde pisa

Não há sapato.

Tudo o que cheira,

Vulgar olfato,

Cheira à tristeza

de uma toupeira.

Das galerias,

De pai a filho,

Herda a riqueza

Da silicose;

Se economiza

Febre reumática

Pode gastar

Tuberculose.

Estranho tato,

Tudo o que pega

Muda-se em lama.

Onde se deita

Chama de cama.

Cedo se estraga

Tudo o que ama.

Cedo se rasga

Tudo o que veste.

Cedo se despe

Da própria carne,

Do próprio nome.

Tudo o que come,

Raro apetite,

Sabe-lhe a fome.

Tudo o que ouve,

Houve ou não houve,

Tem o sentido

De ensurdecê-lo;

Raro desvelo

Dos outros homens.

Tudo o que é seu,

Ninho de sono,

Mina de cobre,

Roça de milho,

Coisas de pobre,

Tem outro dono.

Vive por dentro

Do lado externo.

De olhos abertos

Ou meio cego

Vê a vitrina

De luz marinha

Com seus eternos

Peixes, lagostas,

Gordas galinhas,

Leitões de crosta

Que se desata,

Cerejas rubras,

Cremes de prata.

A fome é sua.

No seu aquário

Da cor da lua

O cobertor

Espesso dorme;

Deus vela o sono

Do mostruário.

O frio é seu.

Não lhe pertencem

A relva, a graça

Dos chafarizes,

Banco de praça,

Flores da rua,

Sombra de parque,

Frescor de fonte.

O medo é seu.

Prisão é sua.

Em socavão,

Desvão de ponte,

Sob o pontão

Apodrecido,

Onde existir

Ângulo morto,

Rota catraia

De cais de porto,

Onde existir

Oco-de-pau,

Dura falésia

De rude praia,

Onde existir

Negra lacraia,

Feroz lacrau,

Bicho felpudo,

Onde houver tudo,

Rato, morcego,

Onde existir

O seu sossego

Cheio de medo,

Onde existir

Algum perigo

De se escalar,

Algum segredo

Para descer,

Onde a patrulha

Não atingir,

Onde o olhar

Do gavião

Não puder vê-lo,

Onde existir

Fétido cheiro,

No seu chiqueiro

O pobre irmão

Pode encostar

Sua cabeça,

Seu coração,

Pode apagar

A luz espessa

De seu olhar

De cão ou urso.

 

Um dia, morre.

 

Não tendo cova,

O bisturi

Faz seu discurso.

 

 

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Valéria Goldner Anchesqui

Bolsistas de pós-doutorado (CNPq)

Camila Hespanhol Peruchi

Rafael Fava Belúzio

Pesquisadores/as vinculados/as

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Ana Clara Magalhães (UnB)

Cleidson Frisso Braz (Doutorando UFES)

Cristiano Augusto da Silva (UESC)

Diana Junkes (UFSCar)

Fabíola Padilha (UFES)

Francielle Villaça (Mestranda UFES)

Henrique Marques Samyn (UERJ)

Marcelo Paiva de Souza (UFPR/CNPq)

Mariane Tavares (Pós-doutoranda UFES)

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