UM GRITO NAS TREVAS
Frente os algozes reunidos
o condenado observa
o ritual da morte...
Os homens em óculos escuros
lustram os cassetetes,
acariciam os coturnos,
limpam os alicates,
lambem os alfinetes,
molham as toalhas,
acendem os charutos,
desencapam os fios elétricos,
juntam os espaldares,
preparam o pau-de-arara
aos olhos do morto-vivo.
Os algozes perguntam
se vai confessar os crimes
de amar a Pátria sobre todas as coisas.
O condenado,
contrito,
pronto para o ritual,
nada responde,
nada ouve,
nada vê...
Os cassetetes envergam
sobre os ombros em dor,
abrindo hematomas de sangue
e escoriações pelas carnes,
enchendo o ar com porradas
surdas ininterruptas…
Os coturnos explodem nos testículos,
nos rins,
no peito,
na barriga,
em golpes dilacerantes...
O condenado nada fala,
nada ouve,
nada vê...
Os algozes,
possessos,
não admitem a rebeldia,
abrem a boca do moribundo,
prendem a língua com o alicate
e torcem feito saca-rolhas
para arrancar as palavras,
até o sangue rubro esvair-se
pelo canto dos lábios.
O morto-vivo nada fala,
nada ouve,
nada vê...
Os algozes cravam os alfinetes
no sabugo das unhas
até que as pequeninas cabeças
encostem nas pontas carcomidas...
Os algozes não admitem
tal atrevimento
e gritam extasiados
nos ouvidos indefesos,
sacudindo-o pelos ombros,
batendo-lhe nas faces:
— Não vamos deixar você morrer,
sem confessar os crimes.
É preciso falar, miserável!
— Vamos surrar sua mãe,
vamos estuprar sua mulher,
vamos torturar seus filhos,
vamos lhe aplicar a injeção
para adquirir o câncer!
O condenado nada fala,
nada ouve,
nada vê...
— É preciso berrar, verme inútil,
não pode nos humilhar assim.
Fomos treinados na maior nação do mundo
e não podemos ser incompetentes!
— Não pode nos insultar,
nós somos a legitimidade,
somos a força que está acima da razão,
somos o poder legal,
somos a revolução que salvou este País
das garras do materialismo!
— Não adianta resistir!
— Fala, imbecil!
— Sua vida está por um fio,
confesse logo os crimes!
— Qual a sua organização?
— Quais são os seus companheiros?
— Quais são os seus planos?
Só se ouve o coração do morto-vivo pulsando
o resto da vida latente...
— Fala, filho da puta!!!
— Fala, comunista!!!
— Fala, facínora!!!
Os algozes encostam
a brasa ardente do charuto
nas faces em sangue do moribundo,
exalando na sala o odor
da carne queimada pelos ares.
Abrem as pálpebras úmidas
de sofrimento
e martírio
e apagam as pontas fumegantes
nas pupilas indefesas,
vazando a luz dos olhos
a ferro feito brasa.
O condenado nada fala,
nada ouve,
nada vê...
Os algozes gritam
como animais alucinados:
— Fala, miserável!!!
— Seus filhos serão jogados aos tubarões,
sua mulher será possuída pelos marginais,
sua mãe será surrada na sua frente!
O condenado nada fala,
nada ouve,
nada vê...
Os algozes encostam os fios elétricos
nas costelas do desfalecido,
220 Watts em cada vértebra.
O condenado estremece
e os algozes urram eufóricos:
— Há sinal de vida neste desgraçado!
— Há sinal de resistência neste subversivo!
— Há sinal de consciência neste filho da puta!
A tirania, enfim,
conseguiu alguma coisa no ofício da tortura…
Apressam a toalha molhada
sobre aquele corpo trêmulo,
220 Watts em cada orelha.
O condenado volta a estremecer,
os algozes justificam o aprendizado
na maior nação do mundo,
um vulcão parece entrar em erupção
nas entranhas do desgraçado…
Mais 220 Watts em cada testículo,
toalha molhada sobre o corpo nu,
o morto-vivo debate-se violentamente...
— Agora ele vai falar!
— Agora ele vai falar!
— Agora ele vai falar!
Os algozes grasnam satisfeitos,
esperando a confissão pelos crimes.
Uma lava de fogo
dormida num peito em brasa
sai das entranhas incandescentes,
passa pelo coração,
sobe à garganta,
chega ao céu da boca,
mistura-se ao sangue coagulado
da língua decepada.
Os algozes,
finalmente,
cheios de euforia
esperam pela confissão…
O condenado se bate,
em convulsão
e ansiedade,
estremecendo com intrepidez.
— Agora este desgraçado fala!
— Agora este desgraçado conta!
— Agora este desgraçado confessa!
2000 Watts em cada sílaba
e apenas uma palavra no ar,
com a força de um vulcão
explodindo aos ouvidos de todos:
— LIBERDADE!
Rio de Janeiro, 25.8.71