Um grito nas trevas

Maciel de Aguiar

UM GRITO NAS TREVAS

 

Frente os algozes reunidos

o condenado observa

o ritual da morte...

Os homens em óculos escuros

lustram os cassetetes,

acariciam os coturnos,

limpam os alicates,

lambem os alfinetes,

molham as toalhas,

acendem os charutos,

desencapam os fios elétricos,

juntam os espaldares,

preparam o pau-de-arara

aos olhos do morto-vivo.

Os algozes perguntam

se vai confessar os crimes

de amar a Pátria sobre todas as coisas.

O condenado,

contrito,

pronto para o ritual,

nada responde,

nada ouve,

nada vê...

Os cassetetes envergam

sobre os ombros em dor,

abrindo hematomas de sangue

e escoriações pelas carnes,

enchendo o ar com porradas

surdas ininterruptas…

Os coturnos explodem nos testículos,

nos rins,

no peito,

na barriga,

em golpes dilacerantes...

O condenado nada fala,

nada ouve,

nada vê...

Os algozes,

possessos,

não admitem a rebeldia,

abrem a boca do moribundo,

prendem a língua com o alicate

e torcem feito saca-rolhas

para arrancar as palavras,

até o sangue rubro esvair-se

pelo canto dos lábios.

O morto-vivo nada fala,

nada ouve,

nada vê...

Os algozes cravam os alfinetes

no sabugo das unhas

até que as pequeninas cabeças

encostem nas pontas carcomidas...

Os algozes não admitem

tal atrevimento

e gritam extasiados

nos ouvidos indefesos,

sacudindo-o pelos ombros,

batendo-lhe nas faces:

Não vamos deixar você morrer,

 sem confessar os crimes.

 É preciso falar, miserável!

 

Vamos surrar sua mãe,

 vamos estuprar sua mulher,

 vamos torturar seus filhos,

 vamos lhe aplicar a injeção

para adquirir o câncer!

O condenado nada fala,

nada ouve,

nada vê...

É preciso berrar, verme inútil,

 não pode nos humilhar assim.

 Fomos treinados na maior nação do mundo

 e não podemos ser incompetentes!

Não pode nos insultar,

 nós somos a legitimidade,

 somos a força que está acima da razão,

 somos o poder legal,

 somos a revolução que salvou este País

 das garras do materialismo!

Não adianta resistir!

Fala, imbecil!

Sua vida está por um fio,

 confesse logo os crimes!

Qual a sua organização?

Quais são os seus companheiros?

Quais são os seus planos?

Só se ouve o coração do morto-vivo pulsando

o resto da vida latente...

Fala, filho da puta!!!

Fala, comunista!!!

Fala, facínora!!!

Os algozes encostam

a brasa ardente do charuto

nas faces em sangue do moribundo,

exalando na sala o odor

da carne queimada pelos ares.

Abrem as pálpebras úmidas

de sofrimento

e martírio

e apagam as pontas fumegantes

nas pupilas indefesas,

vazando a luz dos olhos

a ferro feito brasa.

O condenado nada fala,

nada ouve,

nada vê...

Os algozes gritam

como animais alucinados:

Fala, miserável!!!

Seus filhos serão jogados aos tubarões,

 sua mulher será possuída pelos marginais,

 sua mãe será surrada na sua frente!

O condenado nada fala,

nada ouve,

nada vê...

Os algozes encostam os fios elétricos

nas costelas do desfalecido,

220 Watts em cada vértebra.

O condenado estremece

e os algozes urram eufóricos:

Há sinal de vida neste desgraçado!

Há sinal de resistência neste subversivo!

Há sinal de consciência neste filho da puta!

A tirania, enfim,

conseguiu alguma coisa no ofício da tortura…

Apressam a toalha molhada

sobre aquele corpo trêmulo,

220 Watts em cada orelha.

O condenado volta a estremecer,

os algozes justificam o aprendizado

na maior nação do mundo,

um vulcão parece entrar em erupção

nas entranhas do desgraçado…

Mais 220 Watts em cada testículo,

toalha molhada sobre o corpo nu,

o morto-vivo debate-se violentamente...

Agora ele vai falar!

Agora ele vai falar!

Agora ele vai falar!

Os algozes grasnam satisfeitos,

esperando a confissão pelos crimes.

Uma lava de fogo

dormida num peito em brasa

sai das entranhas incandescentes,

passa pelo coração,

sobe à garganta,

chega ao céu da boca,

mistura-se ao sangue coagulado

da língua decepada.

Os algozes,

finalmente,

cheios de euforia

esperam pela confissão…

O condenado se bate,

em convulsão

e ansiedade,

estremecendo com intrepidez.

Agora este desgraçado fala!

Agora este desgraçado conta!

Agora este desgraçado confessa!

2000 Watts em cada sílaba

e apenas uma palavra no ar,

com a força de um vulcão

explodindo aos ouvidos de todos:

LIBERDADE!

 

Rio de Janeiro, 25.8.71

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