TIO CORNÉLIO
I
A capa-gaúcha pendurada
caindo
até tocar o chão amado.
A cabeça branca
saltando da madrugada:
uma bandeira de paz
no corpo digno hasteada.
Lá vai ele...
os passos apressados
cidade-roça, roça-cidade
no caminho dos homens
que cultivam vida
e simplicidade.
— Seu Cornélio
me vende uma quarta de terra?
— Trouxe a vasilha para levar?
Um sítio não se vende
é para extrair o pão.
(Melhor se não houvesse donos
e a terra se abrisse
em oferta
a todos os que querem semear.
Como a água
impossível de lotear
dividir ou cercar
salta as represas
reúne-se adiante
movimenta os peixes
escorre nas gargantas
compõe o vinho
ou se concentra na uva
e volta a correr limpa
nos rios ou na chuva.)
II
Cem anos?
A terra não tem idade
e o homem não chega ao fim.
Os pais sobrevivem no filho gerado
e no corpo novamente plantado
sob a relva, no silêncio.
— Tio Cornélio,
quantos times de futebol
quantas moças bonitas
brotaram dessa mesma fonte?
Cem anos!
de vacas renovadas, bezerros vadios
bois bravos, cavalo trotão
o leite jorrando das mãos!
Que formidável tesouro de ovos
raros broches de jaboticabas
milhares de anéis de goiabas
cintilantes brincos de milho
intermináveis colares de bananas
biscoitos tostando no forno
e o bule derramando café!
(Cem anos...
— Outros cem e ainda haverá
fome e servidão?
— Homem sem fé...)
III
Cem anos?
É hora do balanço?
Não. Um homem não se resume
a colunas de Deve & Haver,
nem se situa nos limites
do bem e do mal,
do céu ou inferno.
(E quem sou eu para encaixar
em meia dúzia de palavras
pobres e humildes
o século de um homem!)
Do que porventura foi ódio
ressentimentos, injustiças
e frustrações
hoje calaremos
porque a balança pende
nítida
para a crença coletiva
da mão companheira estendida
e da estrada ampla
que os trabalhadores vão abrindo.
Mais do que denunciar
defenderemos a via
por onde todos poderemos passar.
IV
Agora peço uma pausa,
convido todos à janela
para comprovar
que no dia 16 de Fevereiro de 1978
independente do tempo
as árvores vestiram suas melhores folhas
as rosas abriram as pétalas mais perfumadas
os canários livres
(abaixo as gaiolas!)
capricham como nunca os trinados
e daqui a pouco, prestem atenção!
os sapos e grilos vão apresentar
uma nova cantiga de despertar
— em homenagem a Tio Cornélio.
V
Cem anos
e eu aqui, a milhares de quilômetros
com o abraço detido
o beijo embargado
a saudade exilada.
Presença impossível
ontem enchi o peito de furacão
e disparei no ar
uma lasca de voz
prá chegar a tempo de anunciar:
hoje o mundo todo cabe em Muniz Freire.
Eee... Tio Cornélio
aguenta que eu chego
não para contar aventuras
desse mundo agitado
e sim prá ouvir
os seus segredos de amor
(não só aprender a receita
do viver-fraterno
mas também, aqui entre nós,
baixinho:
em cem anos, quantas cabrochas
mulatas, morenas e louras
suspiraram nas curvas das picadas,
nas capoeiras
e nos recantos das lavouras?)
Eee... Tio Cornélio,
guarde um coquinho-catarro prá mim,
aqui vou eu
que o verde não é mais farda nem dor
é pasto útil
e há metralhadoras
que já disparam flor...
...enquanto o espaço me retém,
levanto o brinde:
— Bem-aventurados os seus cem anos
(e a liberdade que vem chegando
nesse Brasil também).
(1978)