Tio Cornélio

Renato Soares

TIO CORNÉLIO

 

I

A capa-gaúcha pendurada

caindo

até tocar o chão amado.

 

A cabeça branca

saltando da madrugada:

uma bandeira de paz

no corpo digno hasteada.

 

Lá vai ele...

os passos apressados

cidade-roça, roça-cidade

no caminho dos homens

que cultivam vida

e simplicidade.

 

Seu Cornélio

me vende uma quarta de terra?

— Trouxe a vasilha para levar?

 

Um sítio não se vende

é para extrair o pão.

(Melhor se não houvesse donos

e a terra se abrisse

em oferta

a todos os que querem semear.

Como a água

impossível de lotear

dividir ou cercar

salta as represas

reúne-se adiante

movimenta os peixes

escorre nas gargantas

compõe o vinho

ou se concentra na uva

e volta a correr limpa

nos rios ou na chuva.)

 

II

Cem anos?

A terra não tem idade

e o homem não chega ao fim.

Os pais sobrevivem no filho gerado

e no corpo novamente plantado

sob a relva, no silêncio.

 

— Tio Cornélio,

quantos times de futebol

quantas moças bonitas

brotaram dessa mesma fonte?

 

Cem anos!

de vacas renovadas, bezerros vadios

bois bravos, cavalo trotão

o leite jorrando das mãos!

 

Que formidável tesouro de ovos

raros broches de jaboticabas

milhares de anéis de goiabas

cintilantes brincos de milho

intermináveis colares de bananas

biscoitos tostando no forno

e o bule derramando café!

 

(Cem anos...

— Outros cem e ainda haverá

fome e servidão?
— Homem sem fé...)

 

III

Cem anos?

É hora do balanço?

Não. Um homem não se resume

a colunas de Deve & Haver,

nem se situa nos limites

do bem e do mal,

do céu ou inferno.

 

(E quem sou eu para encaixar

em meia dúzia de palavras

pobres e humildes

o século de um homem!)

 

Do que porventura foi ódio

ressentimentos, injustiças

e frustrações

hoje calaremos

porque a balança pende

nítida

para a crença coletiva

da mão companheira estendida

e da estrada ampla

que os trabalhadores vão abrindo.

Mais do que denunciar

defenderemos a via

por onde todos poderemos passar.

 

IV

Agora peço uma pausa,

convido todos à janela

para comprovar

que no dia 16 de Fevereiro de 1978

independente do tempo

as árvores vestiram suas melhores folhas

as rosas abriram as pétalas mais perfumadas

os canários livres

(abaixo as gaiolas!)

capricham como nunca os trinados

e daqui a pouco, prestem atenção!

os sapos e grilos vão apresentar

uma nova cantiga de despertar

— em homenagem a Tio Cornélio.

 

V

Cem anos

e eu aqui, a milhares de quilômetros

com o abraço detido

o beijo embargado

a saudade exilada.

 

Presença impossível

ontem enchi o peito de furacão

e disparei no ar

uma lasca de voz

prá chegar a tempo de anunciar:

hoje o mundo todo cabe em Muniz Freire.

 

Eee... Tio Cornélio

aguenta que eu chego

não para contar aventuras

desse mundo agitado

e sim prá ouvir

os seus segredos de amor

(não só aprender a receita

do viver-fraterno

mas também, aqui entre nós,

baixinho:

em cem anos, quantas cabrochas

mulatas, morenas e louras

suspiraram nas curvas das picadas,

nas capoeiras

e nos recantos das lavouras?)

 

Eee... Tio Cornélio,

guarde um coquinho-catarro prá mim,

aqui vou eu

que o verde não é mais farda nem dor

é pasto útil

e há metralhadoras

que já disparam flor...

 

...enquanto o espaço me retém,

levanto o brinde:

— Bem-aventurados os seus cem anos

(e a liberdade que vem chegando

nesse Brasil também).

 

(1978)

 

 

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Bolsistas de pós-doutorado (CNPq)

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Rafael Fava Belúzio

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