Testamento do Brasil

Paulo Mendes Campos

Testamento do Brasil

 

 

 

 

Que já se faça a partilha.

Só de quem nada possui

nada de nada terei.

Que seja aberto na praia,

não na sala do notário,

o testamento de todos.

Quero de Belo Horizonte

esse píncaro mais áspero,

onde fiquei sem consolo,

mas onde floriu por milagre

no recôncavo da brenha

a campânula azulada.

De São João del-Rei só quero

as palmeiras esculpidas

na matriz de São Francisco.

Da Zona da Mata quero

o Ford envolto em poeira

por esse Brasil precário

dos anos vinte (ou twenties),

quando o trompete de jazz

ruborizava a aurora

cor de cinza de Chicago.

Do Alto do rio Negro

quero só a solidão

compacta como o cristal,

quero o índio rodeando

o motor do Catalina,

quero a pedra onde não pude

dormir à beira do rio,

pensando em nós-brasileiros

— entrelaçados destinos —

como contas carcomidas

de um rosário de martírios.

De Lagoa Santa quero

o roxo da sexta-feira,

quero a treva da ladeira,

os brandões da noite acesa,

quero o grotão dos cajus,

onde surgiu uma vez

no breu da noite mineira

uma alma doutro mundo.

Da porta pobre da venda

de todos os povoados

quero o silêncio pesado

do lavrador sem trabalho,

quero a quietude das mãos

como se fossem de argila

no balcão engordurado.

Ainda quero da vila

a ira que se condensa,

a dor imóvel e dura

como um coágulo no sangue.

Da Fazenda do Rosário

quero o mais árido olhar

das crianças retardadas,

quero o grito compulsivo

dos loucos, fogo-pagô

de entardecer calcinado,

a névoa seca e o não,

o não da névoa e o nada.

Da cidade da Bahia

quero os pretos pobres todos,

quero os brancos pobres todos,

quero os pasmos tardos todos.

Do meu rio São Francisco

quero a dor do barranqueiro,

quero as feridas do corpo,

quero a verdade do rio,

quero o remorso do vale,

quero os leprosos famosos,

escrofulosos famintos,

quero roer como o rio

o barro do desespero.

Dos mocambos do Recife

quero as figuras mais tristes,

curvadas mal nasce o dia

em um inferno de lama.

Quero de Olinda as brisas,

brisas leves, brisas livres,

ou como se quer um sol

ou a moeda de ouro

quero a fome do Nordeste,

toda a fome do Nordeste.

Das tardes do Brasil quero,

quero o terror da quietude,

quero a vaca, o boi, o burro

no presépio do menino

que não chegou a nascer.

Dos domingos cor de cal

quero aquele som de flauta

tão brasileiro, tão triste.

De Ouro Preto o que eu quero

são as velhinhas beatas

e a água do chafariz

onde um homem se dobrou

para beber e sentiu

a pobreza do Brasil.

Do Sul, o homem do campo,

matéria-prima da terra,

o homem que se transforma

em cereal, vinho e carne.
Do Rio quero as favelas,

a morte que mora nelas.

De São Paulo quero apenas

a banda podre da fruta,

as chagas do Tietê,

o livro de Carolina.

Do noturno nacional

quero a valsa merencórea

com o céu estrelejado,

quero a lua cor de prata

com saudades da mulata

das grandes fomes de amor.

Do litoral feito luz

quero a rude paciência

do pescador alugado.

 

Da aurora do Brasil

— bezerra parida em dor —

apesar de tudo, quero

a violência do parto

(meu vagido de esperança).

Você também pode se interessar por

— Colofão

Coordenação

Marcelo Ferraz (UFG/CNPq)

Nelson Martinelli Filho (IFES/UFES/CNPq)

Wilberth Salgueiro (UFES/CNPq)

Bolsistas de apoio técnico (FAPES)

Juliana Celestino

Valéria Goldner Anchesqui

Bolsistas de pós-doutorado (CNPq)

Camila Hespanhol Peruchi

Rafael Fava Belúzio

Pesquisadores/as vinculados/as

Abílio Pacheco de Souza (UNIFESSPA)

Ana Clara Magalhães (UnB)

Cleidson Frisso Braz (Doutorando UFES)

Cristiano Augusto da Silva (UESC)

Diana Junkes (UFSCar)

Fabíola Padilha (UFES)

Francielle Villaça (Mestranda UFES)

Henrique Marques Samyn (UERJ)

Marcelo Paiva de Souza (UFPR/CNPq)

Mariane Tavares (Pós-doutoranda UFES)

Patrícia Marcondes de Barros (UEL)

Susana Souto Silva (UFAL)

Weverson Dadalto (IFES)

Além dos nomes acima muitas outras pessoas colaboraram com o projeto. Para uma lista mais completa de agradecimentos, confira a página Sobre o projeto.

O MPAC é um projeto de caráter científico, educativo e cultural, sem fins lucrativos. É vedada a reprodução parcial ou integral dos conteúdos da página para objetivos comerciais. Caso algum titular ou representante legal dos direitos autorais de obras aqui reproduzidas desejem, por qualquer razão e em qualquer momento, excluir algum poema da página, pedimos que entrem em contato com a nossa equipe. A demanda será solucionada o mais rapidamente possível.

— Financiamento e realização

© 2025 Todos os direitos reservados