Tempo subterrâneo

Pedro Tierra

TEMPO SUBTERRÂNEO

 

  Este trabalho pertence a Alexandre, meu irmão

  que a morte proibiu.

 

1.

 

América,

de tuas veias abertas

arrancarei meu ritmo:

grito de meninos traídos,

pássaros,

    vulcões,

  desertos,

ruas de medo,

   povos saqueados!

 

2.

 

Na pele, a parede guarda

histórias inúteis,

massacres sem testemunhas.

 

A parede cerca

de silêncio

a dor do povo.

 

Espelho opaco de tormentos,

os muros gritam na rua

o risco parado de seus enigmas.

 

A cara dos anúncios nega

a chaga aberta

na memória dos muros.

 

GOLPEIO A MEMÓRIA DA TERRA.

 RECOLHO O SANGUE DOS ESQUECIDOS.

  COM CRAVOS ESCUROS MARTELO

   A MARGEM DA LEMBRANÇA

    NOS OLHOS VAZADOS DE AMÉRICA.

 

3.

 

Homens de lama verde,

densa lama de mortos

em formação cerrada

pelas ruas de março.

 

A lama não distingue,

antes, dilui,

    dissolve seus cristais,

cega o fio da faca,

o fio dos olhos

 o fio da vida,

amolece,

   silencia,

   sufoca o vértice dos homens.

 

A lama escorre,

lento dorso de serpente,

arrolamento de mortos

devolvidos ao sol.

 

A lama aboliu o rosto,

   os espelhos:

tudo que possa ferir.

A lama garantiu

o passo dos coturnos

no palácio dos espelhos abolidos.

 

Soube-se dos pátios de horrores,

do corpo decepado:

    governante.

 

Em tudo o medo:

        na palavra,

        no silêncio,

        no golpe,

        na fuga,

        na palidez do rosto, o medo,

   a lama,

   o medo,

   o veneno dos dias

   paralisando sonhos.

 

Contudo, ninguém governa sem rosto.

 

“Procurem no beco,

    nos cemitérios,

no cepo dos açougues,

deem-me uma cara

com pele,

    dentes,

  barba!”

Uma cara como o terno que veste o morto

e lhe devolve o ar de quem dorme.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

 

Cerzido no corpo morto

um rosto qualquer,

um riso qualquer,

como qualquer ausência.

 

Mas a morte rói

a cara do morto:

lavoura sem plantio.

Só colheita.

 

A soda do sangue

devora os dentes,

a língua,

    a luz dos olhos,

    os ossos limpos da cara.

 

A morte cobra sua safra:

gota a gota

  o corpo devora o rosto,

cerzido.

   Justaposto.

 

A lama e seus vermes,

a lama e sua boca roída

repõe seu canto uniforme:

“Procurem um rosto!

No beco,

   nos cemitérios,

   no cepo dos açougues,

deem-me uma cara

com pele,

    dentes,

 barba!”

A lama repõe seu canto cavo

nos ouvidos do povo.

 

4.

 

Passo marcado: açoite.

Vento e açoite.

Pranto. Vento marcado.

Morte.

 

Pranto.

  Passo.

   Vento.

 

Para onde?

 

Para onde, América,

filha de reis submetidos?

Açoite. Vento e açoite.

 

Para onde, América,

teus rios escravizados?

Teus filhos escravizados?

 

Eu quero a sombra dos mortos.

Eu quero da noite surda,

o destino dos devorados.

 

Passo marcado: açoite,

Desço a garganta da memória,

vento e açoite.

 

5.

 

Prisão Militar de Rawson. 18h40. Vestindo unifor-

mes militares, um grupo de guerrilheiros, armado de fuzis, metralha-

doras e pistolas entrou no presídio, num caminhão do exército. Inicia-

se uma rebelião dos 860 detentos. Tiroteio: morte de um guarda.

25 guerrilheiros escapam. (Veja, 23.08.72).

 

“Sob verdadeira chuva de balas, 25 presos fogem em direção

a Trelew. Alguns se desviam do caminho previamente traçado. Diri-

gem-se a outros pontos: Esqul, a oeste, Telsen, a noroeste e Paso

de Arrojo Verde.” (ESP, 17.08.72).

 

Nem todos chegaram a tempo no Aeroporto de Trelew, um dos

grupos é cercado pela polícia nas proximidades de Dolavon: 55 km

de Rawson. Dez guerrilheiros ocupam o Aeroporto de Trelew. Se-

questram um avião. Dirigem-se a Puerto Montt e depois a Santiago.

Minutos depois os demais grupos, retidos em Dalavon, chegam

a Trelew. Ocupam o aeroporto. Todos os aviões são desviados da rota.

Cerco. Três horas depois rendem-se ao Juiz Alejandro Godoy. Depõem

as armas. Em ônibus militares são conduzidos para a base Almirante

Zar. (ESP, 17.08.72).

 

Muralhas de Rawson,

que ossos cercam

a carne de teus escravos?

 

Pedra surda de Rawson,

onde calas o sonho

de teus escravos?

 

Barro amargo de Rawson,

alimenta a hora

de rebelião.

 

Caminhos perdidos de Trelew,

por que nos golpeia os olhos,

a faca dos ventos de Telsen?

 

Caminhos perdidos de Trelew,

por que o fogo à espreita

nas ravinas de Dolavon?

 

Caminhos cegos,

por que a noite desfibra

o preciso tempo de fuga?

 

Caminhos desesperados,

onde a rota

dos reencontros?

 

Sobre as mãos erguidas

o riso dos mortos, como o ferro,

se torce em arma.

 

"Por decisão do comando regional, foram levados para a base

de Trelew em lugar de serem reconduzidos a Rawson, onde poderiam

ser alvo de represálias dos guardas revoltados com a morte do compa-

nheiro no dia da fuga”. (ESP, 23.08.72).

 

Madrugada de terça-feira, 22 de agosto: dezenove guerrilheiros

tentam escapar da base naval de Trelew. “Tomaram a metralhadora

do comandante da guarda — que à inusitada hora de 3h30 fazia uma

revista nas celas — e conseguiram outras armas, utilizando-o como

refém”. Ao chegarem ao portão de saída, enfrentaram o fogo cruzado

de fuzileiros navais entrincheirados em pontos estratégicos. Quinze

morreram na hora e um, no dia seguinte. Versão oficial. (Veja,

30.08.72).

 

Comunicado do Estado Maior: a tentativa de fuga começou

às três e trinta da madrugada — o chefe da guarda fazia uma vistoria

nas celas, enquanto os presos permaneciam no corredor. Foi atacado

pelas costas por Mario Pujadas, que lhe arrebatou a metralhadora

das mãos. Utilizando o oficial como escudo, os 19 guerrilheiros con-

seguiram outras armas, mas ao chegar ao portão da saída enfrentaram

o fogo cruzado dos fuzileiros navais: treze guerrilheiros mortos. Seis

feridos. Um dos feridos morreu em seguida. (ESP, 23.08.72).

 

O comando de Trelew informou que os prisioneiros, 14 homens

e cinco mulheres, tentaram escapar às 3h30 da madrugada, depois

de terem chamado o capitão da guarda, sob pretexto de que um deles

estava doente e precisava de cuidados médicos. (Agência AP).

 

“Logo depois do incidente, o presidente Alejandro Lanusse

convocou uma reunião urgente da Junta dos Comandantes militares

para examinar as possíveis repercussões políticas do fato e adotar

as medidas para prevenir represálias das organizações terroristas.”

(ESP, 23.08.72).

 

Mar subterrâneo de fúria,

Trelew,

 

que chagas trançaram

a corda de teus dias?

 

Que venenos povoaram

a boca de teus ventos?

 

Que dedos cumpriram
tua lavoura de sangue?

 

Dos muros brotaram mãos:

campina de ódios.

 

Onde a raiz destas mãos
assim autônomas?

 

Dos corredores quietos

brotaram mãos:

chagas convocadas,

 

estrelas de sangue e aço

na pele do silêncio.

 

Onde o corpo destas mãos
mobilizadas?

 

Dedos retorcidos sobre o ferro:
martelos de morte.

 

Onde o limite da

fúria?

 

Nos corredores quietos,

tempo de colheita:

 

sobre o sangue-sombra,

ossos de sonhos,

ossos dos séculos,

ossos sem memória...

 

Palavra, apruma em navalha teu fio.

Desfibra o vômito dos diários,

devolve em tuas mãos, ao sol,

o sangue destas muralhas!

 

A Revista “Primeira Plana”, confiscada pelo governo militar,

denuncia: quando os médicos abriram o ataúde de Maria Angelica

Sabelle, um dos 16 prisioneiros que morreram no incidente de Trelew,

“observou-se que ela tinha a base do crânio esfacelada a golpes".

(JT, 01.09.72).

 

Convocados, os herdeiros da lama afluem,

o pulso aberto como o curso dos rios.

 

O mosaico dos corredores aceita o sangue,

a lama, não sei, um fio escuro de mortos.

 

No coração do palácio,

a mesa: polido marfim de ossos.

 

Em volta da mesa, os inventores da morte.

A noite de Trelew se fez navalha.

 

Pode haver um congresso sem pastas?

Sem papéis?

Houve.

 Ninguém teve mãos para trazê-los.

Em volta da mesa,

paralíticos sem idade.

 

Onde perderam as mãos,

severos generais?

 

Em volta da mesa,

um congresso de braços decepados.

 

Sobre a mesa, o gesto

dos moribundos.

 

O sangue,

    a lama, não sei,

 escorre pelos pulsos,

deixa sobre o marfim

 a pauta:

cifra de assassinados,

um caldo grosso de medos.

 

Nas ruas vazias,

a pergunta visita

a boca dos órfãos:

onde as mãos

destes corpos amputados?

 

  Na pele, a parede guarda

  histórias inúteis,

  massacres sem testemunhas.

 

  Trelew,

    onde esconder

    tua atroz geografia?

 

A parede cerca

de silêncio

a dor do povo.

 

6.

 

AMÉRICA!

Arranca da fibra do tempo

um dia de sangues enterrados!

 

Mário Pujadas
Humberto Suarez

 

Palavra, reduz a fibra

até o seco estampido: estanho.

 

Suzana Lasgart

Emílio Mario Delfino

 

Palavra: pão em silêncio sobre a mesa.

Espiga,

  safra saqueada.

 

José Ricardo Mena

Jorge Alejandro Ulla

 

Palavra, não te permita suores,

gordura indolente, pântano,

antes, abrupta tessitura: pedra.

 

Carlos Alberto Del Rey

Adrian Humberto Toschi

 

Palavra, não te faças cristal.

Sino.

 Claro timbre de manhãs:

não inventes o som sem gesto.

 

Miguel Ángel Ponti

Adolfo Eduardo Capello

 

Palavra, veste a roupa do tempo.

Veste a rota camisa do grito.

Tece a dura carne do verso.

 

Carlos Alberto Astudillo

Maria Angélica Sabelle

 

Palavra, não te percas em verso inútil,

fere no ar um voo mais seco:

palavra-de-ordem.

 

Clarisa Rosa Leaplace

Ana Maria Villareal de Santucho

 

Palavra, tenho as mãos devoradas.

A brasa do verso não retroceda,

e, faca de fogo, lavre na pele

do muro o nome dos mártires.

 

Passo marcado: morte.

Desço a garganta de Trelew.

Vento e açoite.

 

7.

 

Doze anos.

Gota a gota.

Interminável,

a lama não distingue,

antes, dilui,

    dissolve sonhos,

      pedras,

    ossos,

cega o fio da faca,

  o fio dos olhos,

    o fio da vida,

amolece,

   silencia,

   sufoca o vértice dos homens.

Sem ruído.

O que é líquido não corta:

 apalpa,

   cerca,

    asfixia.

 

Doze anos.

Ração diária de mortos,

sem impacto.

   Mudos.

    Dissolvidos na garganta da sombra.

 

"No dia 28 de dezembro findo, foi efetuada a prisão, por agentes

dos órgãos responsáveis pela segurança interna, de Carlos Nicolau

Danielli ("Antonio"), elemento de direção do Partido Comunista

do Brasil, PC do B da "linha chinesa", que forneceu informações

permitindo a prisão de outros elementos". “Por volta das 17 horas

do dia 30 de dezembro, Carlos Danielli foi conduzido em diligência

à Av. Engenheiro Armando de Arruda Pereira, nas proximidades da

Rua Cedros, local esse em que o subversivo teria encontro, naquele

horário, com elementos de direção do PC do B. Na hora aprazada,

um carro de marca Volkswagen, de cor branca, placa CN-1006 passou

vagarosamente pelo local e estacionou cerca de 10 metros à frente.

Ato contínuo, Carlos Nicolau Danielli correu em direção ao citado

veículo, tentando empreender fuga, e, ao mesmo tempo, alertando

os ocupantes do Volks, que reconheceu como sendo seus companhei-

ros, os quais abriram fogo contra os elementos dos órgãos de segurança,

estabelecendo-se intenso tiroteio, do qual saiu mortalmente ferido

Carlos Danielli (“Antonio”). Sempre atirando, os ocupantes do Volks-

wagen branco empreenderam fuga, ficando Carlos Danielli à mercê

de sua própria sorte. A caminho do hospital para onde era conduzido,

Danielli, não suportando os ferimentos, veio a falecer.”

No dia 30 de outubro, em São Paulo, os órgãos policiais infor-

mavam que Antonio Benetazzo, preso dois dias antes, fora levado

a um “ponto de encontro” na rua João Boemer, no Bairro do Brás,

e "ao tentar fugir, foi atropelado por um caminhão, morrendo no

local."

No dia 10 de novembro, as autoridades policiais do Rio comuni-

cavam que, ao ser levada para o “aparelho” de seu companheiro, no

Méier, Aurora Maria do Nascimento Furtado “saiu correndo e gritando

em direção a um volks estacionado nas proximidades, havendo em

seguida intenso tiroteio entre os agentes e os ocupantes do carro, depois

do qual Aurora agonizava na rua."

Em nota distribuída dia 05/01/73, os órgãos de segurança infor-

mavam ainda a morte no dia 20/12/72 de Lincoln Cordeiro Oest

e Luís Guilhardini que haviam sido presos no Rio a 20 de novembro.

A morte de mais estes dois é descrita como tendo se dado em cir-

cunstâncias semelhantes às três outras citadas anteriormente". (Opinião,

08/15.01.73).

 

A lama tomou a rua

como se, abertas as veias

da treva, rompesse

um sangue de medo.

 

A lama cercou cidades,

construiu pontes,

impôs silêncio, milagres...

a lama cobriu papéis,

subiu escadas,

penetrou gabinetes,

penetrou a carne da vida

com o sangue de pedreiros mutilados.

 

A lama impôs governo.

A lama mordeu-me a alma.

 

Eu quis apenas ver o rosto de Ana Rosa.

 

Horas,

 dias,

 anos enterrados,

mastiguei o gosto de tragédia.

Eu quis a marca no muro,

um sinal.

 

Bati todas as portas.

Portas de silêncio,

surdas portas

sem rosto.

 

Gritei por uma palavra qualquer.

 

Portas sem gesto,

sem palavra,

sem resposta.

 

Eu pedi a resposta mais amarga.

 

Portas como a pedra

do túmulo jamais

encontrado:

eu pedi a morte de Ana Rosa.

 

Há uma hora em que todas as bocas se fecham.

Há uma hora em que a memória nega.

Há uma hora em que a noite desce

como a mordaça definitiva.

 

E recomeço como o sol

a eterna tarefa

de encontrar a noite.

 

E repiso a marca

dos meus passos

no rosto da lama.

 

Dei minha cabeça ao coração da terra,

à maneira das crianças perdidas:

como a Gestapo, devolvessem o corpo.

Negaram-me a vida,

Negaram-me a morte.

Negaram-me a derradeira forma de esperança.

 

"Em um comunicado divulgado no último sábado, dia 31 de mar-

ço, à tarde, o Secretário de Segurança de São Paulo, general Sérvulo

Mota Lima, deu a versão oficial dos fatos que culminaram com a mor-

te de Alexandre Vannucchi Leme (...).

De acordo com a nota oficial, Alexandre foi preso no dia 16

de março "por pertencer a uma organização subversiva autodenomi-

nada Ação Libertadora Nacional. No dia 17, diz a nota, Alexandre

foi levado para o cruzamento das ruas Bresser com Celso Garcia, no

Brás, "onde teria um encontro com um companheiro", às 11 horas.

Os agentes de segurança ficaram à distância enquanto "Alexandre

dirigiu-se a um bar onde pediu uma cerveja." "Repentinamente —

diz a nota — saiu em desabalada carreira, aproveitando-se de que o

semáforo, recém-aberto, ainda permitia uma passagem arriscada e

impossibilitaria uma perseguição face ao volume de tráfego: a tenta-

tiva não foi coroada de êxito para Alexandre, pois quando ultrapassou

a primeira fila de veículos foi atingido pelo caminhão Mercedes-Benz,

placa NT 1903, dirigido por João Cascov". (Opinião, 2/9.04.73).

 

Visitei os sobreviventes.

Tinham as mãos atadas,

a boca cheia de promessas,

onde o rosto de Ana Rosa?,

  Nada.

 

Há uma hora em que todas as bocas se fecham.

Há uma hora em que a memória nega.

Há uma hora em que a noite desce

como a mordaça definitiva.

 

E recomeço como o sol

a eterna tarefa

de encontrar a noite...

 

GOLPEIO A MEMÓRIA DA TERRA.

RECOLHO O SANGUE DOS ESQUECIDOS.

COM CRAVOS ESCUROS MARTELO

A MARGEM DA LEMBRANÇA

NOS OLHOS VAZADOS DE AMÉRICA.

 

26.10.75

 

"O Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo

divulgou nota oficial comunicando a prisão do Jornalista Vladimir

Herzog, do Departamento de Jornalismo da TV-Cultura, ocorrida

ontem. Vladimir encontra-se no Departamento de Operações Internas

do II Exército, onde se apresentou ontem pela manhã para prestar

depoimento..." (ESP)

 

27.10.75

 

"O Comando do II Exército lamenta informar o seguinte: (...)

6) Cerca das 16h00, ao ser procurado na sala onde fora deixado,

desacompanhado, foi encontrado morto, enforcado, tendo para tanto

utilizado uma tira de pano. (...)

8) As atitudes do Sr. Vladimir Herzog, desde a sua chegada

ao órgão do II Exército, não faziam supor o gesto extremo por ele

tomado." (ESP)

 

Ninguém está salvo

Ruiu a hora dos inocentes.

Todos trazem nos lábios

alguma sombra de culpa.

 

Foi proibido o sonho,

        o canto,

        a palavra.

 

O sangue das palavras

limpa com seu fogo

a cor da mordaça.

 

Ninguém está salvo.

 

Na esquina do teu sono

o silêncio espreita,

a sombra na rua

   espreita,

a hora da morte

   espreita,

 

nas mãos do tempo,

uma tira de pano

   espreita.

 

“O corpo de Vladimir chegou ao velório do Hospital Albert

Einstein as 16h30 de ontem. Sua mulher, Clarice mostrava-se contro-

lada, mas só ficou assim por pouco tempo. A sua primeira crise de

nervos aconteceu quando soube que o hospital não permitiria que se

fizesse um segundo exame do corpo, como ela pretendia. Clarice

chegou a pensar em levar o corpo para sua casa, para possibilitar o

exame, mas isso acabou não se concretizando; dizia-se que um mé-

dico tinha concordado em fazer a autópsia mas já havia a oficial,

que acabou sendo considerada definitiva”. (ESP, 27.10.75).

 

Não estás aqui,

mas tua ausência se arma

de farpas e enigmas.

 

Desenhado na boca

o grito represado:

cal contra a parede escura

    do silêncio.

 

Teu silêncio abriga

a marcha dos tormentos,

as feras,

    os fios,

   o fogo,

Teu silêncio abriga

o grito de tantos...

Como os vulcões guardam

as chagas da terra.

 

"1° — Examinamos com o devido cuidado o presente inquérito

e chegamos à conclusão de que a morte do cidadão Vladimir Herzog,

submetido a investigações por crime contra a Segurança Nacional,

se deu, segundo a prova recolhida, por sua livre e espontânea vontade,

sem auxílio, instigação ou induzimento de quem quer que seja (ver

art. 207 do Código Penal Militar), razão pela qual requeremos o arqui-

vamento dos presentes autos, por inexistência de crime a punir."

(Parecer do Procurador da Justiça Militar — ESP, 10.03.76).

 

A faca do meu uso

não saberá o gosto

de minha carne.

 

Não há presos.

Não há mortos.

Não há crimes.

Apenas lamentos.

 

Palavras de lama

no muro da memória.

 

"A viúva do jornalista Vladimir Herzog e seus filhos entraram

com ação na Justiça, com a intenção de obter a declaração de respon-

sabilidade da União por sua prisão e morte nas dependências do DOI-

CODI, em outubro do ano passado. (...)

A petição enfatiza a perplexidade causada pela notícia de que

Herzog teria se suicidado, pois a própria nota do II Exército afirma que

suas atitudes "não faziam supor o gesto extremo por ele tomado".

Ressalta ainda que ele se servira do cinto do macacão que usava, quando

outro jornalista, Rodolfo Konder, em depoimento juntado à petição,

esclarece que "o macacão que lhe deram para vestir nas dependências

do DOI, a exemplo de todos os outros, não tinha cinto". (ESP,

21.04.76)

 

Não me habituei ao silêncio.

Com algumas palavras

organizo meu lamento:

 

Nome:

Vladimir: igual uma chicotada no rosto.

 

Profissão:

não importa.

Conta apenas a parcela de sonho extinta.

 

Inútil fechar os olhos,

há um espinho cravado

na consciência da tarde.

 

“O Comando do II Exército lamenta informar que foi encontrado

morto, às 13 horas do dia 17 do corrente, sábado, em um dos xadre-

zes do DOI-CODI/II Exército, o Sr. Manoel Fiel Filho. Para apurar

o ocorrido, mandou instaurar Inquérito Policial Militar." (ESP,

20.01.76).

 

Ninguém está a salvo.

 

Os documentos do bolso

não te limpam

    aos olhos da lama.

 

A fábrica,

    a máquina moendo a vida,

    a vida moendo a vida

    não afirmam nada,

    a ferramenta nas mãos,

    turvas como o ferro que malhas

    não te justifica.

 

Ninguém está a salvo.

Todos são culpados

até que a lama os lave

 

    com seu visco.

 

“No dia seguinte, sábado, um taxi parou em frente à casa 155

da rua Coronel Rodrigues. Um homem desceu, jogou no quintal

um saco de lixo e um envelope, e berrou:

— O “seu” Manoel tentou o suicídio.

Terezinha ainda tentou perguntar alguma coisa, mas rapidamente

o homem entrou no carro e desapareceu. Terezinha só teve tempo

de gritar:

— Eu sabia que vocês iam matar ele, eu sabia que vocês iam

matar ele.

No saco azul de 20 litros com o emblema da “Lixeira Ideal"

estavam a calça e a camisa de brim, o cinto e um par de sapatos. No

envelope, com o timbre do IIº Exército, os documentos de Manoel.

Eram seis e meia da tarde (...)" (ESP, 21.01.76)

 

No saco azul,

   devolvidos teus vazios:

 

a calça rota,

a camisa de brim

sem o amparo de teus ombros,

 

o cinto,

um par de sapatos

   vazio de roteiros.

 

No saco azul,

   teu lixo,

   teu bagaço,

   a casca sem a lenha

   de teu cerne sem

   memória.

 

Eram seis e meia da tarde...

 

"O Oficial de serviço, Tamota Nakal, foi procurado pelo carce-

reiro Alfredo Umeda, dizendo este que Manoel Fiel Filho não tinha

respondido a seu chamado quando foi levar-lhe o almoço, permane-

cendo inerte com algo enrolado no pescoço. Umeda foi à cela e cha-

mou socorros médicos, comparecendo o enfermeiro Moacir Piffen,

que constatou que Manoel Fiel Filho estava morto e seu corpo ainda

quente. Ele tinha utilizado as meias de nailon de seu uso para suici-

dar-se." (...) "Conclui o relatório que emerge a hipótese de sui-

cídio, não havendo crime capitulado no Código Penal Militar ou no

Código Penal Civil, nem transgressão prevista nos regulamentos mili-

tares." (ESP, 05.05.76)

 

Põe de lado

a camisa

a calça,

os sapatos,

a esperança de retorno.

 

Nome: Manoel.

 

Põe de lado

o lenço,

a fúria,

o fardo de ódios.

 

Profissão: metalúrgico.

 

Põe de lado

o dia perdido,

a mulher,

a mágoa.

 

Guarda as meias

como agasalho.

 

Despe a crença,

o sonho,

o sal de tua humanidade.

Despe tudo

até que só reste

a carcaça devorada

de tua paz.

 

Inútil fechar os olhos,

há um espinho cravado

na consciência da tarde.

 

8.

 

Doze anos.

A morte roeu

a cara do morto:

três lavouras colhidas.

 

Cerzido no corpo morto

um rosto qualquer,

um riso qualquer,

de poderosas mãos.

 

Em tudo o medo:

   na palavra,

   no silêncio,

   no golpe,

   na fuga

   na palidez do rosto, o medo:

a lama,

o medo,

 

o veneno dos dias

paralisando sonhos.

 

“Com um atraso de quase uma hora, o trem UP 209 da Rede

Ferroviária Federal saiu da Estação Engenheiro Goulart em direção

à Estação Roosevelt, parada final. Vinha de Calmon Viana, de onde

saíra às 5h30 da manhã, transportava em seis pequenos e inseguros

vagões quase três mil pessoas. Às 7h15, entrou na curva saliente,

a uns quinhentos metros da Estação Goulart. Exatamente aí o sistema

elétrico do trem acusou defeito e o maquinista foi obrigado a parar.

Meia hora depois, um forte aparato policial estava no local,

agindo contra dezenas de manifestantes, operários descontentes que

haviam apedrejado o trem, depois de invadir a cabine do maquinista

e o dominarem. Resultado: dois vagões ficaram completamente

danificados (mais tarde foram removidos para o pátio da Estação

Roosevelt, para serem submetidos a exames periciais, com vidros

quebrados e a lataria amassada.)" (ESP, 20.05.76)

 

Recuei recuando

afiando as facas

   do desespero:

 

tive a terra,

não tenho,

 

tive a casa,

não tenho,

 

tive uma pátria,

venderam,

 

tive filhos,

estão mortos

ou dispersos,

 

tive caminhos,

foram fechados,

 

tive mãos:

deceparam.

 

Dos pulsos abertos

    liberto

a vingança encarcerada

no ventre dos vulcões.

 

Faço do meu sangue

a lava que escorre

e queima

    e plantas chagas

na face do tempo

até fazê-lo pedra

e pó

e cinza

e silêncio.

 

9.

 

"Buenos Aires — Fechamento de todos os sindicatos,

instituição da pena de morte, suspensão das atividades de todos os par-

tidos, rigorosa censura à imprensa, fechamento do Congresso Nacional,

das Assembleias provinciais, destituição dos governadores e vice-gover-

nadores das províncias, destituição dos Juízes da Suprema Corte de

Justiça. Estas foram as primeiras providências adotadas pela Junta

Militar que assumiu o poder na Argentina, depois de derrubar a pre-

sidente Maria Estela Martinez de Peron, na madrugada de ontem".
(ESP, 25.03.76)

 

Palácio de pedra e ossos.

Palácio de pedra e agonia.

Convocados, os herdeiros da lama

afluem:

em volta da mesa,

um congresso de braços decepados.

 

Para onde, América,

teus rios escravizados,

teus filhos escravizados?

 

“Três policiais, um capitão de Marinha e um executivo da

Chrysler morreram ontem numa ofensiva dos Montoneros que come-

çou na noite de terça-feira com uma série de explosões em instalações

militares.” (ESP, 15.04.76)

 

Recuei recuando,

afiando as facas

  do desespero.

 

Esgotou-se o leite da renúncia.

Resta

 o bagaço de minerais exaustos.

 

Como quem retrocedeu

à primitiva fúria,

amarro em meus braços

a tensa musculatura

dos fuzis:

 

MINHA RESPOSTA É O FOGO!

 

  (junho/76)

 

 

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— Colofão

Coordenação

Marcelo Ferraz (UFG/CNPq)

Nelson Martinelli Filho (IFES/UFES/CNPq)

Wilberth Salgueiro (UFES/CNPq)

Bolsistas de apoio técnico (FAPES)

Juliana Celestino

Valéria Goldner Anchesqui

Bolsistas de pós-doutorado (CNPq)

Camila Hespanhol Peruchi

Rafael Fava Belúzio

Pesquisadores/as vinculados/as

Abílio Pacheco de Souza (UNIFESSPA)

Ana Clara Magalhães (UnB)

Cleidson Frisso Braz (Doutorando UFES)

Cristiano Augusto da Silva (UESC)

Diana Junkes (UFSCar)

Fabíola Padilha (UFES)

Francielle Villaça (Mestranda UFES)

Henrique Marques Samyn (UERJ)

Marcelo Paiva de Souza (UFPR/CNPq)

Mariane Tavares (Pós-doutoranda UFES)

Patrícia Marcondes de Barros (UEL)

Susana Souto Silva (UFAL)

Weverson Dadalto (IFES)

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— Financiamento e realização

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