TEMPO SUBTERRÂNEO
Este trabalho pertence a Alexandre, meu irmão
que a morte proibiu.
1.
América,
de tuas veias abertas
arrancarei meu ritmo:
grito de meninos traídos,
pássaros,
vulcões,
desertos,
ruas de medo,
povos saqueados!
2.
Na pele, a parede guarda
histórias inúteis,
massacres sem testemunhas.
A parede cerca
de silêncio
a dor do povo.
Espelho opaco de tormentos,
os muros gritam na rua
o risco parado de seus enigmas.
A cara dos anúncios nega
a chaga aberta
na memória dos muros.
GOLPEIO A MEMÓRIA DA TERRA.
RECOLHO O SANGUE DOS ESQUECIDOS.
COM CRAVOS ESCUROS MARTELO
A MARGEM DA LEMBRANÇA
NOS OLHOS VAZADOS DE AMÉRICA.
3.
Homens de lama verde,
densa lama de mortos
em formação cerrada
pelas ruas de março.
A lama não distingue,
antes, dilui,
dissolve seus cristais,
cega o fio da faca,
o fio dos olhos
o fio da vida,
amolece,
silencia,
sufoca o vértice dos homens.
A lama escorre,
lento dorso de serpente,
arrolamento de mortos
devolvidos ao sol.
A lama aboliu o rosto,
os espelhos:
tudo que possa ferir.
A lama garantiu
o passo dos coturnos
no palácio dos espelhos abolidos.
Soube-se dos pátios de horrores,
do corpo decepado:
governante.
Em tudo o medo:
na palavra,
no silêncio,
no golpe,
na fuga,
na palidez do rosto, o medo,
a lama,
o medo,
o veneno dos dias
paralisando sonhos.
Contudo, ninguém governa sem rosto.
“Procurem no beco,
nos cemitérios,
no cepo dos açougues,
deem-me uma cara
com pele,
dentes,
barba!”
Uma cara como o terno que veste o morto
e lhe devolve o ar de quem dorme.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Cerzido no corpo morto
um rosto qualquer,
um riso qualquer,
como qualquer ausência.
Mas a morte rói
a cara do morto:
lavoura sem plantio.
Só colheita.
A soda do sangue
devora os dentes,
a língua,
a luz dos olhos,
os ossos limpos da cara.
A morte cobra sua safra:
gota a gota
o corpo devora o rosto,
cerzido.
Justaposto.
A lama e seus vermes,
a lama e sua boca roída
repõe seu canto uniforme:
“Procurem um rosto!
No beco,
nos cemitérios,
no cepo dos açougues,
deem-me uma cara
com pele,
dentes,
barba!”
A lama repõe seu canto cavo
nos ouvidos do povo.
4.
Passo marcado: açoite.
Vento e açoite.
Pranto. Vento marcado.
Morte.
Pranto.
Passo.
Vento.
Para onde?
Para onde, América,
filha de reis submetidos?
Açoite. Vento e açoite.
Para onde, América,
teus rios escravizados?
Teus filhos escravizados?
Eu quero a sombra dos mortos.
Eu quero da noite surda,
o destino dos devorados.
Passo marcado: açoite,
Desço a garganta da memória,
vento e açoite.
5.
Prisão Militar de Rawson. 18h40. Vestindo unifor-
mes militares, um grupo de guerrilheiros, armado de fuzis, metralha-
doras e pistolas entrou no presídio, num caminhão do exército. Inicia-
se uma rebelião dos 860 detentos. Tiroteio: morte de um guarda.
25 guerrilheiros escapam. (Veja, 23.08.72).
“Sob verdadeira chuva de balas, 25 presos fogem em direção
a Trelew. Alguns se desviam do caminho previamente traçado. Diri-
gem-se a outros pontos: Esqul, a oeste, Telsen, a noroeste e Paso
de Arrojo Verde.” (ESP, 17.08.72).
Nem todos chegaram a tempo no Aeroporto de Trelew, um dos
grupos é cercado pela polícia nas proximidades de Dolavon: 55 km
de Rawson. Dez guerrilheiros ocupam o Aeroporto de Trelew. Se-
questram um avião. Dirigem-se a Puerto Montt e depois a Santiago.
Minutos depois os demais grupos, retidos em Dalavon, chegam
a Trelew. Ocupam o aeroporto. Todos os aviões são desviados da rota.
Cerco. Três horas depois rendem-se ao Juiz Alejandro Godoy. Depõem
as armas. Em ônibus militares são conduzidos para a base Almirante
Zar. (ESP, 17.08.72).
Muralhas de Rawson,
que ossos cercam
a carne de teus escravos?
Pedra surda de Rawson,
onde calas o sonho
de teus escravos?
Barro amargo de Rawson,
alimenta a hora
de rebelião.
Caminhos perdidos de Trelew,
por que nos golpeia os olhos,
a faca dos ventos de Telsen?
Caminhos perdidos de Trelew,
por que o fogo à espreita
nas ravinas de Dolavon?
Caminhos cegos,
por que a noite desfibra
o preciso tempo de fuga?
Caminhos desesperados,
onde a rota
dos reencontros?
Sobre as mãos erguidas
o riso dos mortos, como o ferro,
se torce em arma.
"Por decisão do comando regional, foram levados para a base
de Trelew em lugar de serem reconduzidos a Rawson, onde poderiam
ser alvo de represálias dos guardas revoltados com a morte do compa-
nheiro no dia da fuga”. (ESP, 23.08.72).
Madrugada de terça-feira, 22 de agosto: dezenove guerrilheiros
tentam escapar da base naval de Trelew. “Tomaram a metralhadora
do comandante da guarda — que à inusitada hora de 3h30 fazia uma
revista nas celas — e conseguiram outras armas, utilizando-o como
refém”. Ao chegarem ao portão de saída, enfrentaram o fogo cruzado
de fuzileiros navais entrincheirados em pontos estratégicos. Quinze
morreram na hora e um, no dia seguinte. Versão oficial. (Veja,
30.08.72).
Comunicado do Estado Maior: a tentativa de fuga começou
às três e trinta da madrugada — o chefe da guarda fazia uma vistoria
nas celas, enquanto os presos permaneciam no corredor. Foi atacado
pelas costas por Mario Pujadas, que lhe arrebatou a metralhadora
das mãos. Utilizando o oficial como escudo, os 19 guerrilheiros con-
seguiram outras armas, mas ao chegar ao portão da saída enfrentaram
o fogo cruzado dos fuzileiros navais: treze guerrilheiros mortos. Seis
feridos. Um dos feridos morreu em seguida. (ESP, 23.08.72).
O comando de Trelew informou que os prisioneiros, 14 homens
e cinco mulheres, tentaram escapar às 3h30 da madrugada, depois
de terem chamado o capitão da guarda, sob pretexto de que um deles
estava doente e precisava de cuidados médicos. (Agência AP).
“Logo depois do incidente, o presidente Alejandro Lanusse
convocou uma reunião urgente da Junta dos Comandantes militares
para examinar as possíveis repercussões políticas do fato e adotar
as medidas para prevenir represálias das organizações terroristas.”
(ESP, 23.08.72).
Mar subterrâneo de fúria,
Trelew,
que chagas trançaram
a corda de teus dias?
Que venenos povoaram
a boca de teus ventos?
Que dedos cumpriram
tua lavoura de sangue?
Dos muros brotaram mãos:
campina de ódios.
Onde a raiz destas mãos
assim autônomas?
Dos corredores quietos
brotaram mãos:
chagas convocadas,
estrelas de sangue e aço
na pele do silêncio.
Onde o corpo destas mãos
mobilizadas?
Dedos retorcidos sobre o ferro:
martelos de morte.
Onde o limite da
fúria?
Nos corredores quietos,
tempo de colheita:
sobre o sangue-sombra,
ossos de sonhos,
ossos dos séculos,
ossos sem memória...
Palavra, apruma em navalha teu fio.
Desfibra o vômito dos diários,
devolve em tuas mãos, ao sol,
o sangue destas muralhas!
A Revista “Primeira Plana”, confiscada pelo governo militar,
denuncia: quando os médicos abriram o ataúde de Maria Angelica
Sabelle, um dos 16 prisioneiros que morreram no incidente de Trelew,
“observou-se que ela tinha a base do crânio esfacelada a golpes".
(JT, 01.09.72).
Convocados, os herdeiros da lama afluem,
o pulso aberto como o curso dos rios.
O mosaico dos corredores aceita o sangue,
a lama, não sei, um fio escuro de mortos.
No coração do palácio,
a mesa: polido marfim de ossos.
Em volta da mesa, os inventores da morte.
A noite de Trelew se fez navalha.
Pode haver um congresso sem pastas?
Sem papéis?
Houve.
Ninguém teve mãos para trazê-los.
Em volta da mesa,
paralíticos sem idade.
Onde perderam as mãos,
severos generais?
Em volta da mesa,
um congresso de braços decepados.
Sobre a mesa, o gesto
dos moribundos.
O sangue,
a lama, não sei,
escorre pelos pulsos,
deixa sobre o marfim
a pauta:
cifra de assassinados,
um caldo grosso de medos.
Nas ruas vazias,
a pergunta visita
a boca dos órfãos:
onde as mãos
destes corpos amputados?
Na pele, a parede guarda
histórias inúteis,
massacres sem testemunhas.
Trelew,
onde esconder
tua atroz geografia?
A parede cerca
de silêncio
a dor do povo.
6.
AMÉRICA!
Arranca da fibra do tempo
um dia de sangues enterrados!
Mário Pujadas
Humberto Suarez
Palavra, reduz a fibra
até o seco estampido: estanho.
Suzana Lasgart
Emílio Mario Delfino
Palavra: pão em silêncio sobre a mesa.
Espiga,
safra saqueada.
José Ricardo Mena
Jorge Alejandro Ulla
Palavra, não te permita suores,
gordura indolente, pântano,
antes, abrupta tessitura: pedra.
Carlos Alberto Del Rey
Adrian Humberto Toschi
Palavra, não te faças cristal.
Sino.
Claro timbre de manhãs:
não inventes o som sem gesto.
Miguel Ángel Ponti
Adolfo Eduardo Capello
Palavra, veste a roupa do tempo.
Veste a rota camisa do grito.
Tece a dura carne do verso.
Carlos Alberto Astudillo
Maria Angélica Sabelle
Palavra, não te percas em verso inútil,
fere no ar um voo mais seco:
palavra-de-ordem.
Clarisa Rosa Leaplace
Ana Maria Villareal de Santucho
Palavra, tenho as mãos devoradas.
A brasa do verso não retroceda,
e, faca de fogo, lavre na pele
do muro o nome dos mártires.
Passo marcado: morte.
Desço a garganta de Trelew.
Vento e açoite.
7.
Doze anos.
Gota a gota.
Interminável,
a lama não distingue,
antes, dilui,
dissolve sonhos,
pedras,
ossos,
cega o fio da faca,
o fio dos olhos,
o fio da vida,
amolece,
silencia,
sufoca o vértice dos homens.
Sem ruído.
O que é líquido não corta:
apalpa,
cerca,
asfixia.
Doze anos.
Ração diária de mortos,
sem impacto.
Mudos.
Dissolvidos na garganta da sombra.
"No dia 28 de dezembro findo, foi efetuada a prisão, por agentes
dos órgãos responsáveis pela segurança interna, de Carlos Nicolau
Danielli ("Antonio"), elemento de direção do Partido Comunista
do Brasil, PC do B da "linha chinesa", que forneceu informações
permitindo a prisão de outros elementos". “Por volta das 17 horas
do dia 30 de dezembro, Carlos Danielli foi conduzido em diligência
à Av. Engenheiro Armando de Arruda Pereira, nas proximidades da
Rua Cedros, local esse em que o subversivo teria encontro, naquele
horário, com elementos de direção do PC do B. Na hora aprazada,
um carro de marca Volkswagen, de cor branca, placa CN-1006 passou
vagarosamente pelo local e estacionou cerca de 10 metros à frente.
Ato contínuo, Carlos Nicolau Danielli correu em direção ao citado
veículo, tentando empreender fuga, e, ao mesmo tempo, alertando
os ocupantes do Volks, que reconheceu como sendo seus companhei-
ros, os quais abriram fogo contra os elementos dos órgãos de segurança,
estabelecendo-se intenso tiroteio, do qual saiu mortalmente ferido
Carlos Danielli (“Antonio”). Sempre atirando, os ocupantes do Volks-
wagen branco empreenderam fuga, ficando Carlos Danielli à mercê
de sua própria sorte. A caminho do hospital para onde era conduzido,
Danielli, não suportando os ferimentos, veio a falecer.”
No dia 30 de outubro, em São Paulo, os órgãos policiais infor-
mavam que Antonio Benetazzo, preso dois dias antes, fora levado
a um “ponto de encontro” na rua João Boemer, no Bairro do Brás,
e "ao tentar fugir, foi atropelado por um caminhão, morrendo no
local."
No dia 10 de novembro, as autoridades policiais do Rio comuni-
cavam que, ao ser levada para o “aparelho” de seu companheiro, no
Méier, Aurora Maria do Nascimento Furtado “saiu correndo e gritando
em direção a um volks estacionado nas proximidades, havendo em
seguida intenso tiroteio entre os agentes e os ocupantes do carro, depois
do qual Aurora agonizava na rua."
Em nota distribuída dia 05/01/73, os órgãos de segurança infor-
mavam ainda a morte no dia 20/12/72 de Lincoln Cordeiro Oest
e Luís Guilhardini que haviam sido presos no Rio a 20 de novembro.
A morte de mais estes dois é descrita como tendo se dado em cir-
cunstâncias semelhantes às três outras citadas anteriormente". (Opinião,
08/15.01.73).
A lama tomou a rua
como se, abertas as veias
da treva, rompesse
um sangue de medo.
A lama cercou cidades,
construiu pontes,
impôs silêncio, milagres...
a lama cobriu papéis,
subiu escadas,
penetrou gabinetes,
penetrou a carne da vida
com o sangue de pedreiros mutilados.
A lama impôs governo.
A lama mordeu-me a alma.
Eu quis apenas ver o rosto de Ana Rosa.
Horas,
dias,
anos enterrados,
mastiguei o gosto de tragédia.
Eu quis a marca no muro,
um sinal.
Bati todas as portas.
Portas de silêncio,
surdas portas
sem rosto.
Gritei por uma palavra qualquer.
Portas sem gesto,
sem palavra,
sem resposta.
Eu pedi a resposta mais amarga.
Portas como a pedra
do túmulo jamais
encontrado:
eu pedi a morte de Ana Rosa.
Há uma hora em que todas as bocas se fecham.
Há uma hora em que a memória nega.
Há uma hora em que a noite desce
como a mordaça definitiva.
E recomeço como o sol
a eterna tarefa
de encontrar a noite.
E repiso a marca
dos meus passos
no rosto da lama.
Dei minha cabeça ao coração da terra,
à maneira das crianças perdidas:
como a Gestapo, devolvessem o corpo.
Negaram-me a vida,
Negaram-me a morte.
Negaram-me a derradeira forma de esperança.
"Em um comunicado divulgado no último sábado, dia 31 de mar-
ço, à tarde, o Secretário de Segurança de São Paulo, general Sérvulo
Mota Lima, deu a versão oficial dos fatos que culminaram com a mor-
te de Alexandre Vannucchi Leme (...).
De acordo com a nota oficial, Alexandre foi preso no dia 16
de março "por pertencer a uma organização subversiva autodenomi-
nada Ação Libertadora Nacional. No dia 17, diz a nota, Alexandre
foi levado para o cruzamento das ruas Bresser com Celso Garcia, no
Brás, "onde teria um encontro com um companheiro", às 11 horas.
Os agentes de segurança ficaram à distância enquanto "Alexandre
dirigiu-se a um bar onde pediu uma cerveja." "Repentinamente —
diz a nota — saiu em desabalada carreira, aproveitando-se de que o
semáforo, recém-aberto, ainda permitia uma passagem arriscada e
impossibilitaria uma perseguição face ao volume de tráfego: a tenta-
tiva não foi coroada de êxito para Alexandre, pois quando ultrapassou
a primeira fila de veículos foi atingido pelo caminhão Mercedes-Benz,
placa NT 1903, dirigido por João Cascov". (Opinião, 2/9.04.73).
Visitei os sobreviventes.
Tinham as mãos atadas,
a boca cheia de promessas,
onde o rosto de Ana Rosa?,
Nada.
Há uma hora em que todas as bocas se fecham.
Há uma hora em que a memória nega.
Há uma hora em que a noite desce
como a mordaça definitiva.
E recomeço como o sol
a eterna tarefa
de encontrar a noite...
GOLPEIO A MEMÓRIA DA TERRA.
RECOLHO O SANGUE DOS ESQUECIDOS.
COM CRAVOS ESCUROS MARTELO
A MARGEM DA LEMBRANÇA
NOS OLHOS VAZADOS DE AMÉRICA.
26.10.75
"O Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo
divulgou nota oficial comunicando a prisão do Jornalista Vladimir
Herzog, do Departamento de Jornalismo da TV-Cultura, ocorrida
ontem. Vladimir encontra-se no Departamento de Operações Internas
do II Exército, onde se apresentou ontem pela manhã para prestar
depoimento..." (ESP)
27.10.75
"O Comando do II Exército lamenta informar o seguinte: (...)
6) Cerca das 16h00, ao ser procurado na sala onde fora deixado,
desacompanhado, foi encontrado morto, enforcado, tendo para tanto
utilizado uma tira de pano. (...)
8) As atitudes do Sr. Vladimir Herzog, desde a sua chegada
ao órgão do II Exército, não faziam supor o gesto extremo por ele
tomado." (ESP)
Ninguém está salvo
Ruiu a hora dos inocentes.
Todos trazem nos lábios
alguma sombra de culpa.
Foi proibido o sonho,
o canto,
a palavra.
O sangue das palavras
limpa com seu fogo
a cor da mordaça.
Ninguém está salvo.
Na esquina do teu sono
o silêncio espreita,
a sombra na rua
espreita,
a hora da morte
espreita,
nas mãos do tempo,
uma tira de pano
espreita.
“O corpo de Vladimir chegou ao velório do Hospital Albert
Einstein as 16h30 de ontem. Sua mulher, Clarice mostrava-se contro-
lada, mas só ficou assim por pouco tempo. A sua primeira crise de
nervos aconteceu quando soube que o hospital não permitiria que se
fizesse um segundo exame do corpo, como ela pretendia. Clarice
chegou a pensar em levar o corpo para sua casa, para possibilitar o
exame, mas isso acabou não se concretizando; dizia-se que um mé-
dico tinha concordado em fazer a autópsia mas já havia a oficial,
que acabou sendo considerada definitiva”. (ESP, 27.10.75).
Não estás aqui,
mas tua ausência se arma
de farpas e enigmas.
Desenhado na boca
o grito represado:
cal contra a parede escura
do silêncio.
Teu silêncio abriga
a marcha dos tormentos,
as feras,
os fios,
o fogo,
Teu silêncio abriga
o grito de tantos...
Como os vulcões guardam
as chagas da terra.
"1° — Examinamos com o devido cuidado o presente inquérito
e chegamos à conclusão de que a morte do cidadão Vladimir Herzog,
submetido a investigações por crime contra a Segurança Nacional,
se deu, segundo a prova recolhida, por sua livre e espontânea vontade,
sem auxílio, instigação ou induzimento de quem quer que seja (ver
art. 207 do Código Penal Militar), razão pela qual requeremos o arqui-
vamento dos presentes autos, por inexistência de crime a punir."
(Parecer do Procurador da Justiça Militar — ESP, 10.03.76).
A faca do meu uso
não saberá o gosto
de minha carne.
Não há presos.
Não há mortos.
Não há crimes.
Apenas lamentos.
Palavras de lama
no muro da memória.
"A viúva do jornalista Vladimir Herzog e seus filhos entraram
com ação na Justiça, com a intenção de obter a declaração de respon-
sabilidade da União por sua prisão e morte nas dependências do DOI-
CODI, em outubro do ano passado. (...)
A petição enfatiza a perplexidade causada pela notícia de que
Herzog teria se suicidado, pois a própria nota do II Exército afirma que
suas atitudes "não faziam supor o gesto extremo por ele tomado".
Ressalta ainda que ele se servira do cinto do macacão que usava, quando
outro jornalista, Rodolfo Konder, em depoimento juntado à petição,
esclarece que "o macacão que lhe deram para vestir nas dependências
do DOI, a exemplo de todos os outros, não tinha cinto". (ESP,
21.04.76)
Não me habituei ao silêncio.
Com algumas palavras
organizo meu lamento:
Nome:
Vladimir: igual uma chicotada no rosto.
Profissão:
não importa.
Conta apenas a parcela de sonho extinta.
Inútil fechar os olhos,
há um espinho cravado
na consciência da tarde.
“O Comando do II Exército lamenta informar que foi encontrado
morto, às 13 horas do dia 17 do corrente, sábado, em um dos xadre-
zes do DOI-CODI/II Exército, o Sr. Manoel Fiel Filho. Para apurar
o ocorrido, mandou instaurar Inquérito Policial Militar." (ESP,
20.01.76).
Ninguém está a salvo.
Os documentos do bolso
não te limpam
aos olhos da lama.
A fábrica,
a máquina moendo a vida,
a vida moendo a vida
não afirmam nada,
a ferramenta nas mãos,
turvas como o ferro que malhas
não te justifica.
Ninguém está a salvo.
Todos são culpados
até que a lama os lave
com seu visco.
“No dia seguinte, sábado, um taxi parou em frente à casa 155
da rua Coronel Rodrigues. Um homem desceu, jogou no quintal
um saco de lixo e um envelope, e berrou:
— O “seu” Manoel tentou o suicídio.
Terezinha ainda tentou perguntar alguma coisa, mas rapidamente
o homem entrou no carro e desapareceu. Terezinha só teve tempo
de gritar:
— Eu sabia que vocês iam matar ele, eu sabia que vocês iam
matar ele.
No saco azul de 20 litros com o emblema da “Lixeira Ideal"
estavam a calça e a camisa de brim, o cinto e um par de sapatos. No
envelope, com o timbre do IIº Exército, os documentos de Manoel.
Eram seis e meia da tarde (...)" (ESP, 21.01.76)
No saco azul,
devolvidos teus vazios:
a calça rota,
a camisa de brim
sem o amparo de teus ombros,
o cinto,
um par de sapatos
vazio de roteiros.
No saco azul,
teu lixo,
teu bagaço,
a casca sem a lenha
de teu cerne sem
memória.
Eram seis e meia da tarde...
"O Oficial de serviço, Tamota Nakal, foi procurado pelo carce-
reiro Alfredo Umeda, dizendo este que Manoel Fiel Filho não tinha
respondido a seu chamado quando foi levar-lhe o almoço, permane-
cendo inerte com algo enrolado no pescoço. Umeda foi à cela e cha-
mou socorros médicos, comparecendo o enfermeiro Moacir Piffen,
que constatou que Manoel Fiel Filho estava morto e seu corpo ainda
quente. Ele tinha utilizado as meias de nailon de seu uso para suici-
dar-se." (...) "Conclui o relatório que emerge a hipótese de sui-
cídio, não havendo crime capitulado no Código Penal Militar ou no
Código Penal Civil, nem transgressão prevista nos regulamentos mili-
tares." (ESP, 05.05.76)
Põe de lado
a camisa
a calça,
os sapatos,
a esperança de retorno.
Nome: Manoel.
Põe de lado
o lenço,
a fúria,
o fardo de ódios.
Profissão: metalúrgico.
Põe de lado
o dia perdido,
a mulher,
a mágoa.
Guarda as meias
como agasalho.
Despe a crença,
o sonho,
o sal de tua humanidade.
Despe tudo
até que só reste
a carcaça devorada
de tua paz.
Inútil fechar os olhos,
há um espinho cravado
na consciência da tarde.
8.
Doze anos.
A morte roeu
a cara do morto:
três lavouras colhidas.
Cerzido no corpo morto
um rosto qualquer,
um riso qualquer,
de poderosas mãos.
Em tudo o medo:
na palavra,
no silêncio,
no golpe,
na fuga
na palidez do rosto, o medo:
a lama,
o medo,
o veneno dos dias
paralisando sonhos.
“Com um atraso de quase uma hora, o trem UP 209 da Rede
Ferroviária Federal saiu da Estação Engenheiro Goulart em direção
à Estação Roosevelt, parada final. Vinha de Calmon Viana, de onde
saíra às 5h30 da manhã, transportava em seis pequenos e inseguros
vagões quase três mil pessoas. Às 7h15, entrou na curva saliente,
a uns quinhentos metros da Estação Goulart. Exatamente aí o sistema
elétrico do trem acusou defeito e o maquinista foi obrigado a parar.
Meia hora depois, um forte aparato policial estava no local,
agindo contra dezenas de manifestantes, operários descontentes que
haviam apedrejado o trem, depois de invadir a cabine do maquinista
e o dominarem. Resultado: dois vagões ficaram completamente
danificados (mais tarde foram removidos para o pátio da Estação
Roosevelt, para serem submetidos a exames periciais, com vidros
quebrados e a lataria amassada.)" (ESP, 20.05.76)
Recuei recuando
afiando as facas
do desespero:
tive a terra,
não tenho,
tive a casa,
não tenho,
tive uma pátria,
venderam,
tive filhos,
estão mortos
ou dispersos,
tive caminhos,
foram fechados,
tive mãos:
deceparam.
Dos pulsos abertos
liberto
a vingança encarcerada
no ventre dos vulcões.
Faço do meu sangue
a lava que escorre
e queima
e plantas chagas
na face do tempo
até fazê-lo pedra
e pó
e cinza
e silêncio.
9.
"Buenos Aires — Fechamento de todos os sindicatos,
instituição da pena de morte, suspensão das atividades de todos os par-
tidos, rigorosa censura à imprensa, fechamento do Congresso Nacional,
das Assembleias provinciais, destituição dos governadores e vice-gover-
nadores das províncias, destituição dos Juízes da Suprema Corte de
Justiça. Estas foram as primeiras providências adotadas pela Junta
Militar que assumiu o poder na Argentina, depois de derrubar a pre-
sidente Maria Estela Martinez de Peron, na madrugada de ontem".
(ESP, 25.03.76)
Palácio de pedra e ossos.
Palácio de pedra e agonia.
Convocados, os herdeiros da lama
afluem:
em volta da mesa,
um congresso de braços decepados.
Para onde, América,
teus rios escravizados,
teus filhos escravizados?
“Três policiais, um capitão de Marinha e um executivo da
Chrysler morreram ontem numa ofensiva dos Montoneros que come-
çou na noite de terça-feira com uma série de explosões em instalações
militares.” (ESP, 15.04.76)
Recuei recuando,
afiando as facas
do desespero.
Esgotou-se o leite da renúncia.
Resta
o bagaço de minerais exaustos.
Como quem retrocedeu
à primitiva fúria,
amarro em meus braços
a tensa musculatura
dos fuzis:
MINHA RESPOSTA É O FOGO!
(junho/76)
Comentário do pesquisador
Pedro Tierra é pseudônimo de Hamilton Pereira da Silva. O poema constitui a seção “Tempo subterrâneo”, parte do volume “Poemas do povo da noite”. Na página de abertura da seção, consta a seguinte dedicatória: “Este trabalho pertence a Alexandre Vannucchi Leme, meu irmão que a morte proibiu”. Embora seja subdividida em trechos numerados, a seção difere das demais por não atribuir um título a cada um dos poemas particulares e por não iniciar cada trecho em uma nova página. Por isso, a seção foi considerada como um único poema longo. Na segunda edição desse livro (coeditada pela Fundação Perseu Abramo e pela Publisher Brasil, em 2009), há um texto introdutório intitulado “Explicação necessária”. Nessa introdução, Pedro Tierra (Hamilton Pereira da Silva) informa: “Os poemas aqui reunidos foram escritos durante os cinco anos de prisão – de 1972 a 1977 – e publicados em volumes separados: Poemas do povo da noite (Ed. Livramento, S. Paulo, 1979), Água de Rebelião (Ed. Vozes, Petrópolis, 1983)” (2009, p. 19). A segunda edição, de 2009, reproduz o poema "Tempo subterrâneo" nas páginas 125-150.