SÚPLICA DOS CADÁVERES
Os esqueletos mostram-se
perambulando pelas ruas,
como chocalhos que anunciam
os mortos que se levantam
na procura do destino.
Aquelas ossadas cambaleantes
invadem as praças,
as calçadas,
os becos,
como guizos ensurdecedores,
mostrando a desgraça.
Crânios afundados,
perfurados por balas,
traumatizados por porradas,
esfacelados por coturnos;
costelas fraturadas,
fêmures dilacerados,
clavículas quebradas,
bacias fragmentadas.
Derramam restos de carne
por onde passam trêmulos.
Os cadáveres sem nome
surgem por todos os cantos.
Centenas de dores,
milhares de sofrimentos,
como a implorar um direito,
e cada qual a suplicar
através dos movimentos
descoordenados das mandíbulas:
— Deem-me uma morte digna...
— Deem-me uma morte digna...
— Deem-me uma morte digna...
Muitos nem ao menos percebem
aquela invasão de esvaídos,
que suplicam estendidos
e caminham indiferentes
e ao pavor.
As ossadas nuas transitam
aos olhos de todos os que passam
e poucos são os que se apercebem
dos que surgem dos escombros,
enquanto as canções ufanistas
saúdam os tricampeões da bola.
—— Oh! Brasil dos ancestrais,
que repousas num berço esplêndido.
Acorda que os filhos teus
não têm direito à sepultura.
Levanta-te desta eternidade
que os sediciosos estão nas ruas
enfrentando os assassinos...
Desgraçados de nós,
poetas que cantamos em vão
canções aos vencidos
e enxergamos a peregrinação
dos cadáveres dos meninos
que nem ao menos viveram
a idade do Cristo,
e que são levados a carregar
nos crânios perfurados
a mesma coroa de espinhos
em perfurações insuportáveis,
frente aos olhos extasiados de uns
e à postura indiferente de outros,
para a satisfação dos senhores
que, do alto do Palácio
do Planalto sobre a tragédia,
lavam as mãos de Pilatos.
Os mortos pelos crimes
da consciência despertada
caminham pelas veredas
levando o sentimento
de rebeldia
e Liberdade.
Corpos nus que desafiam
as ordens sob mordaça,
sem direito à sepultura,
sem Atestado de Óbito,
sem julgamento,
sem defesa,
sem piedade,
sem extrema-unção.
Os cadáveres suplicam
pelas ruas com as ossadas
como a alvura do leite,
desengonçados em guizos
anunciando o torpor:
— Que Cristo tenha piedade...
— Que Cristo tenha piedade...
— Que Cristo tenha piedade...
Os cadáveres suplicam
diante dos que pensam
que nunca serão levados
pelos mesmos caminhos.
— Deem-me o esquecimento...
— Deem-me o esquecimento...
— Deem-me o esquecimento...
Rio de Janeiro, 12.9.73