Súplica dos cadáveres

Maciel de Aguiar

  SÚPLICA DOS CADÁVERES

 

 

Os esqueletos mostram-se

perambulando pelas ruas,

como chocalhos que anunciam

os mortos que se levantam

na procura do destino.

Aquelas ossadas cambaleantes

invadem as praças,

as calçadas,

os becos,

como guizos ensurdecedores,

mostrando a desgraça.

Crânios afundados,

perfurados por balas,

traumatizados por porradas,

esfacelados por coturnos;

costelas fraturadas,

fêmures dilacerados,

clavículas quebradas,

bacias fragmentadas.

Derramam restos de carne

por onde passam trêmulos.

Os cadáveres sem nome

surgem por todos os cantos.

Centenas de dores,

milhares de sofrimentos,

como a implorar um direito,

e cada qual a suplicar

através dos movimentos

descoordenados das mandíbulas:

Deem-me uma morte digna...

Deem-me uma morte digna...

Deem-me uma morte digna...

Muitos nem ao menos percebem

aquela invasão de esvaídos,

que suplicam estendidos

e caminham indiferentes

e ao pavor.

As ossadas nuas transitam

aos olhos de todos os que passam

e poucos são os que se apercebem

dos que surgem dos escombros,

enquanto as canções ufanistas

saúdam os tricampeões da bola. 

—— Oh! Brasil dos ancestrais,

   que repousas num berço esplêndido.

   Acorda que os filhos teus

   não têm direito à sepultura.

   Levanta-te desta eternidade

   que os sediciosos estão nas ruas

   enfrentando os assassinos...

Desgraçados de nós,

poetas que cantamos em vão

canções aos vencidos

e enxergamos a peregrinação

dos cadáveres dos meninos

que nem ao menos viveram

a idade do Cristo,

e que são levados a carregar

nos crânios perfurados

a mesma coroa de espinhos

em perfurações insuportáveis,

frente aos olhos extasiados de uns

e à postura indiferente de outros,

para a satisfação dos senhores

que, do alto do Palácio

do Planalto sobre a tragédia,

lavam as mãos de Pilatos.

Os mortos pelos crimes

da consciência despertada

caminham pelas veredas

levando o sentimento

de rebeldia

e Liberdade.

Corpos nus que desafiam

as ordens sob mordaça,

sem direito à sepultura,

sem Atestado de Óbito,

sem julgamento,

sem defesa,

sem piedade,

sem extrema-unção.

Os cadáveres suplicam

pelas ruas com as ossadas

como a alvura do leite,

desengonçados em guizos

anunciando o torpor:

Que Cristo tenha piedade...

Que Cristo tenha piedade...

Que Cristo tenha piedade...

Os cadáveres suplicam

diante dos que pensam

que nunca serão levados

pelos mesmos caminhos.

Deem-me o esquecimento...

Deem-me o esquecimento...

Deem-me o esquecimento...

 

Rio de Janeiro, 12.9.73

 

 

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Bolsistas de pós-doutorado (CNPq)

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Rafael Fava Belúzio

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Ana Clara Magalhães (UnB)

Cleidson Frisso Braz (Doutorando UFES)

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Francielle Villaça (Mestranda UFES)

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