SOBRE PARTIDAS
Aprendi desde cedo
a não sofrer com partidas.
Cansei de abraçar companheiros
que no outro dia morreram
cansei de esperar por eles
com um até amanhã
que até hoje persigo nos sonhos.
Aprendi desde cedo
a não sofrer com partidas.
Daí substituir o medo
de perder tantas pessoas queridas
pelo rosto impassível
que exigiam de mim.
Daí porque todos os sentimentos
que tínhamos uns pelos outros
era tácito
daí porque todo o carinho
que fazíamos uns nos outros
era rápido.
Aprendi desde cedo
a não sofrer com partidas.
Acostumei a dar por falta deles
nos encontros não realizados
costumei em noites chuvosas
confirmar prisão ou morte
nos pontos de segurança
com o coração batendo desesperado
e a arma engatilhada sobre o casaco.
Aprendi a esperar os cinco minutos regulamentares
mas aprendi também a infringir as normas de segurança
aguardando mais cinco minutos louco de esperança e liberalismo.
Aprendi também a sair cabisbaixo pela chuva
e a fingir momentos após com os outros
com a mais absoluta frieza.
Por isso as partidas não me assustam.
Aqui dentro tão pouco vingou o desejo
de que os sentimentos fossem mais definitivos:
Transferências de prisão
companheiros soltos
companheiros mortos
companheiros loucos
reafirmam a transitoriedade de tudo.
Daí porque aprendi desde cedo
a não sofrer com as partidas.
É que eu sou um combatente provisório
de uma causa quase eterna no homem
acredito ter como bandeira
senão o sonho perfeito,
a melhor utopia possível.
É que eu sou um homem provisório
de expectativas provisórias
de moral provisória
e uns poucos valores absolutos.
É que sendo um homem provisório
de uma causa provisória
eu devo me acostumar às partidas
pois eu sou fraco, forte é nossa causa
que causa tantas partidas.
Por isso as partidas não me assustam.
Com elas moldo a substância do meu canto.
Nenhuma pessoa amada deve se preocupar comigo:
posso viver perfeitamente mesmo com tantas partidas,
algumas ganhas, a maioria perdida.
Pássaro migrante, saio daqui um dia
voando com um trabuco
prá qualquer lugar onde a voz do homem for fraca.
Comentário do pesquisador
Poema que fecha o livro "Inventário de cicatrizes" (1978).