Sobre a atual vergonha de ser brasileiro

Affonso Romano de Sant'Anna

SOBRE A ATUAL VERGONHA DE

SER BRASILEIRO

 

Projeto de Constituição atribuído a Capistrano de Abreu:

   Art. 1º — Todo brasileiro deve ter vergonha na cara.

Parágrafo único:

Revogam-se as disposições em contrário.

 

Que vergonha, meu Deus! ser brasileiro
e estar crucificado num cruzeiro
erguido num monte de corrupção.

 

Antes nos matavam de porrada e choque
nas celas da subversão. Agora
nos matam de vergonha e fome
exibindo estatísticas na mão.

 

Estão zombando de mim. Não acredito.
Debocham a viva voz e por escrito
É abrir jornal, lá vem desgosto.
Cada notícia

   — é um vídeo-tapa no rosto.

 

Cada vez é mais difícil ser brasileiro.
Cada vez é mais difícil ser cavalo
desse Exu perverso

   — nesse desgovernado terreiro.

 

Nunca vi tamanho abuso.
Estou confuso, obtuso,
com a razão em parafuso:
a honestidade saiu de moda,
a honra caiu de uso.

 

De hora em hora

a coisa piora:
arruinado o passado,
comprometido o presente,
vai-se o futuro à penhora.

Me lembra antiga história

daquele índio Atahualpa

ante Pizarro — o invasor,

enchendo de ouro a balança

com a ilusão de o seduzir

e conquistar seu amor.

 

Este é um país esquisito:

onde o ministro se demite

negando a demissão

e os discursos são inflados

pelos ventos da inflação.

Valei-nos Santo Cabral
nessa avessa calmaria
em forma de recessão
e na tempestade da fome
ensinai-me

   — a navegação.

 

Este é o país do diz e do desdiz,
onde o dito é desmentido
no mesmo instante em que é dito.
Não há lingüista e erudito
que apure o sentido inscrito
nesse discurso invertido.

 

Aqui

    o dito é o não-dito

    e já ninguém pergunta

    se será o Benedito.

 

Aqui

    o discurso se trunca:
    o sim é não,

    o não, talvez,
    o talvez

— nunca.

 

Eis o sinal dos tempos:

este o país produtor
que tanto mais produz
tanto mais é devedor.

 

Um país exportador
que quanto mais exporta
mais importante se torna
como país

    — mau pagador.

 

E, no entanto, há quem julgue
que somos um bloco alegre
do "Comigo Ninguém Pode",
quando somos um país de cornos mansos
cuja história vai dar bode.

 

Dar bode, já que nunca deu bolo,
tão prometido pros pobres
em meio a festas e alarde,
onde quem partiu, repartiu,
ficou com a maior parte
deixando pobre o Brasil.

 

Eis uma situação
totalmente pervertida:
— uma nação que é rica
consegue ficar falida,
— o ouro brota em nosso peito,
mas mendigamos com a mão,
— uma nação encarcerada
doa a chave ao carcereiro
para ficar na prisão.

 

Cada povo tem o governo que merece?
Ou cada povo
tem os ladrões a que enriquece?
Cada povo tem os ricos que o enobrecem?
Ou cada povo tem os pulhas
que o empobrecem?

 

O fato é que cada vez mais
mais se entristece esse povo

num rosário de contas e promessas,

num sobe e desce

  — de prantos e preces.

 

Ce n’est pas un pays sérieux!
já dizia o general.
O que somos afinal?
Um país pererê? folclórico?

tropical? misturando morte

e carnaval?

 

— Um povo de degradados?
— Filhos de degredados
largados no litoral?
— Um povo-macunaíma
sem caráter nacional?

 

Ou somos um conto de fardas

um engano fabuloso

narrado a um menino bobo,

— história de chapeuzinho

já na barriga do lobo?

 

Por que só nos contos de fada
os pobres fracos vencem os ricos ogres?
Por que os ricos dos países pobres
são pobres perto dos ricos
dos países ricos? Por que
os pobres ricos dos países pobres
não se aliam aos pobres dos países pobres
para enfrentar os ricos dos países ricos,
cada vez mais ricos,

mesmo quando investem nos países pobres?

 

Espelho, espelho meu!
há um país mais perdido que o meu?
Espelho, espelho meu!
há um governo mais omisso que o meu?
Espelho, espelho meu!
há um povo mais passivo que o meu?

 

E o espelho respondeu
algo que se perdeu
entre o inferno que padeço
e o desencanto do céu.

 

 

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