segundo canto de pavor
Avanço encostado nas paredes,
como um assaltante extraordinário.
Lâmpadas ardem mosquitos mortos.
Prédios acompanham o movimento,
policiais brincam de bater em mulheres.
A injeção penetra
e seu líquido se esparrama no meu corpo.
Figuras se misturam nas carnes
e ouço palavras.
Pernas se contorcem, braços se contorcem, seios se contorcem.
Com um revólver invisível entro na pensão.
Os pratos estão expostos.
O alimento, o comprimido, a farmácia.
No meu receio percorro corpos em fuga,
como se pegasse um trem de repente
e partisse para outra cidade,
onde por certo conheceria muitas pessoas,
iria a um circo, a um parque ou mesmo a um cinema.
Mas dentro de mim estaria uma sala de homens infelizes.
Numa tarde de domingo, poderia jogar futebol.
Mas eu sei o que estaria dentro de mim
e da população.
Por isso, calo a boca e sigo.
O trem vem vindo e a hora é tão próxima.
De nada valerá esta observação
e esta sensação terrível das coisas.
Tenho medo do muito espanto,
deste fermento crescido como uma noite,
ou como um ônibus em alta velocidade
que cai de uma ponte.
Tenho medo dos que garantem suas cadeiras políticas.
Tenho medo das tentativas que morreram,
deste noticiário exclusivo, desta cadeira de rodas,
dos médicos, dos engenheiros e dos homens de 93 anos.
Tenho medo da missa e dos santos prometidos.
Tenho medo deste dia 29 de abril do ano da graça de 1965.
Tenho medo pelos escriturários, pelos torneiros mecânicos,
[pelos seminaristas, pelos operários,
[comerciários, industriários, etc.
Tenho medo de ti, que num momento de angústia
poderás vender a minha vida para viver um dia a mais.
Tenho medo dos embaixadores das nações amigas.
Tenho medo da Bolívia, da Venezuela, da Argentina.
Tenho medo de Cuba.
Tenho medo por minha irmã, Rosa Maria Alves de Faria
e pelo mendigo Josué da Silva Guimarães, que vai morrer amanhã.
Tenho medo pela Praça Ramos de Azevedo,
pela Biblioteca Municipal Mário de Andrade
e pelos subúrbios da Estrada de Ferro Central do Brasil.
Tenho medo pelo meu emprego e minha vaga de cidadão comum.
Eu, poeta numa geração que nasceu morta,
tenho medo.
De dentro do trem vejo as tabuletas e os números.
Com meus nervos cortados a navalha e ferros e aços e giletes,
entro no meio da noite com um grito de dor,
e me atiro contra os que vieram me salvar.
Tenho medo, sim,
deste rádio, desta comunicação permitida.
Tenho medo de sair às ruas e de voltar para dentro,
de continuar a viagem e de indagar alguma pessoa.
A salada está pronta,
diz a dona da pensão, uma mulher triste,
que usa óculos de lentes grossas.