[Retorno ao labirinto] Poema sem medida

Pedro Tierra

POEMA SEM MEDIDA

 

 

 

 

Venho da alma da noite.

Sem naufrágios.

Trago no corpo um pesado gosto

      de sepulturas.

 

Roto espelho de torturas,

meu poema nasce

do sombrio itinerário

 de meus mortos.

 

O corpo se nutre dos destroços deste sonho de liberdade que

recusou a ferrugem com que a sombra e seus exércitos buscam corroer

o minério humano, e, sob todos os dilúvios, sob a grossa umidade

da treva, a raiz dos cogumelos, o dente dos carcereiros, sob o pântano

das horas dissolvidas na garganta, a saliva corrompida dos carrascos,

sob as botas do rei, reacende as fogueiras de sua esperança.

 

A poesia soterrada

risca no muro

um canto de coragem

e nele se planta

sobre todas as tintas

— ou o sangue

dos sacrificados —

que o recobriram

durante os séculos

de silêncio.

 

Rompeu entre os dedos a subterrânea flora dos abismos. Trago

as mãos enegrecidas pelo vento podre dos porões, o riso das algemas,

a fagulha dos dínamos, o açoite. O musgo lento recobre as unhas,

a pele, a alma, tudo que guarde alguma promessa de luz, e os olhos

— diamantes perseguidos — se encerram sob a pálpebra verde dos pri-

sioneiros como o sol da laranja dentro de sua armadura de sumos.

Dias cegos deslizam pelos trilhos como vagões mortos, vazios de sol.

 

A poesia soterrada

em água

  e

  barro

divide a lama

e alivia o lábio

gretado

dos humanos.

 

A poesia soterrada

em ar

e

 canto

divide a água

e respira no peito

deserto

dos humanos.

 

Na alma da noite resiste a música

de violões aprisionados

e a voz humana replanta a palavra

na parede do tempo.

 

A palavra é proibida, todos sabemos, e as sentinelas do silêncio

marcham pelos corredores, convertem em medo o ar que leva o canto,

rasgam o corpo das palavras, cegam os olhos das canções, rompem

o piso à procura do fogo, rompem a vida que se refaz tateando cami-

nhos emparedados, e retornam em paz para seus muros.

 

Na alma da noite

a voz humana replanta

uma semente,

um diamante,

uma criança

com enormes olhos

de amanhecer

   e orvalho.

 

"Eduardo Leite (Bacurí) — a quem este poema é dedicado — foi

preso no dia 21.08.70, no Rio de Janeiro, pela equipe do delegado

Sergio Paranhos Fleury, e pelo CENIMAR. Foi torturado tanto no Rio

como em São Paulo, para onde o trouxeram por mais de uma vez.

Em setembro de 1970 veio definitivamente para São Paulo, onde

recebeu carta de sua esposa, Denise Crispim e um sapatinho de sua

filha, nascida após sua prisão (e que ele morreria sem conhecer). Já

no DEOPS seus torturadores planejam matá-lo. Com esse fim forjam

a notícia distribuída aos jornais, afirmando ter Eduardo fugido quando

da prisão de Joaquim Câmara Ferreira, a 23.10.70. No dia 25.10.70

a notícia foi publicada (e o tenente da PM de São Paulo, Chiari de Tal,

comandante da tropa de choque do DEOPS, indo até a cela solitária

onde se encontrava Eduardo mostrou-lhe o jornal com a notícia).

No entanto, quando se divulgava sua "fuga", Eduardo sequer havia

saído de sua cela. Seus torturadores chegaram a olear as portas enfer-

rujadas das celas para que pudessem retirá-lo em silêncio. Os demais

presos políticos que à época se encontravam naquela carceragem

ficaram alertas. Quando da retirada de Eduardo Leite, aos 50 minutos

do dia 27.10.70, protestaram em altos brados e puderam ver que

ele estava bastante machucado, sem poder andar em virtude das tor-

turas sofridas. Era responsável pela carceragem do DEOPS, na oca-

sião desses acontecimentos, o delegado Luiz Gonzaga Santos Barbosa.

Eduardo Leite permaneceu nas mãos de seus torturadores até o dia

08.12.70, quando sua morte foi noticiada como ocorrida num tiroteio

numa cidade do litoral paulista. Sua esposa viu o corpo antes do en-

terro e relatou que estava desfigurado pelas torturas, quase irreconhe-

cível. Seu assassinato foi denunciado na 2ª Auditoria da 2ª CJM

de São Paulo, mas o juiz Nelson Machado Guimarães negou-se a fazer

constar dos autos do processo."

 

   (abril/77)

 

 

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Pesquisadores/as vinculados/as

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