POEMA SEM MEDIDA
Venho da alma da noite.
Sem naufrágios.
Trago no corpo um pesado gosto
de sepulturas.
Roto espelho de torturas,
meu poema nasce
do sombrio itinerário
de meus mortos.
O corpo se nutre dos destroços deste sonho de liberdade que
recusou a ferrugem com que a sombra e seus exércitos buscam corroer
o minério humano, e, sob todos os dilúvios, sob a grossa umidade
da treva, a raiz dos cogumelos, o dente dos carcereiros, sob o pântano
das horas dissolvidas na garganta, a saliva corrompida dos carrascos,
sob as botas do rei, reacende as fogueiras de sua esperança.
A poesia soterrada
risca no muro
um canto de coragem
e nele se planta
sobre todas as tintas
— ou o sangue
dos sacrificados —
que o recobriram
durante os séculos
de silêncio.
Rompeu entre os dedos a subterrânea flora dos abismos. Trago
as mãos enegrecidas pelo vento podre dos porões, o riso das algemas,
a fagulha dos dínamos, o açoite. O musgo lento recobre as unhas,
a pele, a alma, tudo que guarde alguma promessa de luz, e os olhos
— diamantes perseguidos — se encerram sob a pálpebra verde dos pri-
sioneiros como o sol da laranja dentro de sua armadura de sumos.
Dias cegos deslizam pelos trilhos como vagões mortos, vazios de sol.
A poesia soterrada
em água
e
barro
divide a lama
e alivia o lábio
gretado
dos humanos.
A poesia soterrada
em ar
e
canto
divide a água
e respira no peito
deserto
dos humanos.
Na alma da noite resiste a música
de violões aprisionados
e a voz humana replanta a palavra
na parede do tempo.
A palavra é proibida, todos sabemos, e as sentinelas do silêncio
marcham pelos corredores, convertem em medo o ar que leva o canto,
rasgam o corpo das palavras, cegam os olhos das canções, rompem
o piso à procura do fogo, rompem a vida que se refaz tateando cami-
nhos emparedados, e retornam em paz para seus muros.
Na alma da noite
a voz humana replanta
uma semente,
um diamante,
uma criança
com enormes olhos
de amanhecer
e orvalho.
"Eduardo Leite (Bacurí) — a quem este poema é dedicado — foi
preso no dia 21.08.70, no Rio de Janeiro, pela equipe do delegado
Sergio Paranhos Fleury, e pelo CENIMAR. Foi torturado tanto no Rio
como em São Paulo, para onde o trouxeram por mais de uma vez.
Em setembro de 1970 veio definitivamente para São Paulo, onde
recebeu carta de sua esposa, Denise Crispim e um sapatinho de sua
filha, nascida após sua prisão (e que ele morreria sem conhecer). Já
no DEOPS seus torturadores planejam matá-lo. Com esse fim forjam
a notícia distribuída aos jornais, afirmando ter Eduardo fugido quando
da prisão de Joaquim Câmara Ferreira, a 23.10.70. No dia 25.10.70
a notícia foi publicada (e o tenente da PM de São Paulo, Chiari de Tal,
comandante da tropa de choque do DEOPS, indo até a cela solitária
onde se encontrava Eduardo mostrou-lhe o jornal com a notícia).
No entanto, quando se divulgava sua "fuga", Eduardo sequer havia
saído de sua cela. Seus torturadores chegaram a olear as portas enfer-
rujadas das celas para que pudessem retirá-lo em silêncio. Os demais
presos políticos que à época se encontravam naquela carceragem
ficaram alertas. Quando da retirada de Eduardo Leite, aos 50 minutos
do dia 27.10.70, protestaram em altos brados e puderam ver que
ele estava bastante machucado, sem poder andar em virtude das tor-
turas sofridas. Era responsável pela carceragem do DEOPS, na oca-
sião desses acontecimentos, o delegado Luiz Gonzaga Santos Barbosa.
Eduardo Leite permaneceu nas mãos de seus torturadores até o dia
08.12.70, quando sua morte foi noticiada como ocorrida num tiroteio
numa cidade do litoral paulista. Sua esposa viu o corpo antes do en-
terro e relatou que estava desfigurado pelas torturas, quase irreconhe-
cível. Seu assassinato foi denunciado na 2ª Auditoria da 2ª CJM
de São Paulo, mas o juiz Nelson Machado Guimarães negou-se a fazer
constar dos autos do processo."
(abril/77)
Comentário do pesquisador
Pedro Tierra é pseudônimo de Hamilton Pereira da Silva. O “Poema sem medida” integra a seção “Retorno ao labirinto”, parte do volume “Poemas do povo da noite”. Consta na página de abertura da seção: “Este poema nasceu soterrado. / Nasceu da morte de Bacuri, / meu companheiro e meu irmão. / Permaneceu sete anos destilando sua dor / pelos corredores, afiando os dentes, / buscando a força e a vestimenta do grito. / Encontrei-o – cristal e ferro – entre / as paredes de meu dia e aqui e vos entrego” (TIERRA, 1979, p. 100). A mensagem de abertura sugere que as partes seguintes compõem um único poema. Por outro lado, considerando-se o projeto gráfico do livro e o paralelismo com as demais seções, cada parte pode ser lida como um poema autônomo. Por isso, as partes foram aqui registradas separadamente, com o título geral da seção informado entre colchetes, seguido do título de cada poema particular. Na segunda edição do livro (coeditada pela Fundação Perseu Abramo e pela Publisher Brasil, em 2009), há um texto introdutório, intitulado “Explicação necessária”, em que Pedro Tierra (Hamilton Pereira da Silva) informa: “Os poemas aqui reunidos foram escritos durante os cinco anos de prisão – de 1972 a 1977 – e publicados em volumes separados: Poemas do povo da noite (Ed. Livramento, S. Paulo, 1979), Água de Rebelião (Ed. Vozes, Petrópolis, 1983)” (2009, p. 19). Na edição de 2009, que reproduz “Poema sem media” nas páginas 122-124, o texto final sobre a tortura e o assassinato de Eduardo Leite foi movido para o início do poema. A segunda edição apresenta em prosa a advertência de abertura da seção e informa que o poema foi escrito em abril de 1977.