RESTAURADOR
Restauro a dor dos corações partidos
a aura dos amantes despedaçados
as pétalas milenares esquecidas nas alcovas
a ciência dos papiros que viraram cinzas;
recomponho com perfeição cada espirro
espirrado por um rei do Egito
em seu palácio
cada sonho lúbrico impregnado na cortina
de uma virgem impenetrada das Índias;
sei recriar em belas palavras os gritos
de dor de cada dissidente
empalado no Oriente
e que teve metade dos dentes
semeados na Pérsia
por força de algum ciclone.
Não tenho diplomas nem plumas.
Minha especialidade é restaurar
catedrais góticas
e relações gastas
com uma ótica e um estilo muito próprio.
CONSERTO:
Vitrais de santos
que tiveram a beatitude
indeferida por Deus
mediante algum decreto
painéis de guerreiros de Creta
derrotados por outras bichas de Esparta
as colunas de templos esparsos
e o sustentáculo das colinas sem mapas definidos
o lamento dos muros
o manto real puído por baratas pré-colombianas
o cimento dos tempos,
nada, absolutamente nada resiste
à minha arte e ao meu preciosismo.
Meu cinzel remodela emoções
sensorialidades, prazeres, esperanças.
Ele disfarça e aproxima
a próxima distância impossível
encurta a versão excludente
faz com que a diversão de um
não seja a dor do outro.
Com delicadeza e esmero
ele burila as pedras centenárias
com as quais nos fundamos
com tal beleza drástica e pagã
na total inexatidão das fórmulas matemáticas.
Mas ele não opera milagres
nem faz retornar o falso esplendor original.
Antes assim:
a ternura com cicatrizes
é melhor que o mito da indestrutibilidade
abandonado que este foi
do meio ao campo de batalha.
Lá contabilizaremos os amantes que tivemos
e antes de cair a noite
e terminar tais contas complicadíssimas
já sentiremos culpa.
Lá, no mármore enegrecido
a memória já esculpiu suas feridas
e a razão suas desculpas.
Lá também estão nossas masmorras
e cemitérios,
as cruzes dos corpos que usamos
apenas para nos ferir
e depois sepultamos
mediante um telefonema ou um bilhete.
Mas essas marcas ficarão
eternamente ameaçadoras
dando um sentido desmesurado
aos nossos menores erros
como rente a nós dois
na travessia desse mesmo verso
estão o princípio e o fim
passado ele restará apenas o labirinto
de muros infinitos
onde crescem as novas (h) Eras
dos jardins que se bifurcam
trepadeiras colossais de tempo
onde choraremos
como duas estúpidas samambaias
sentindo nostalgia do futuro.