RECORDAÇÕES DO PARAÍSO
1
Objetos pequeninos
da cela
corneta que toca
crepúsculo que cala
Objetos pequeninos
da cela
caneta que escreve
coração que arranha
Abjetos sentimentos
na cama
Manta que cobre
medo que desnuda
2
Hora do rancho
a bandeja passa
na grade
o rádio toca no bolso
do sentinela calado
ao lado do fôsso
onde devem ficar
os cadáveres.
4
Eu não me lembrava
do meu antigo rosto
até olhar na privada
e cuspir nele.
Não, não pode ter sido
a mesma face,
não me olhe assim, não tenho culpa.
6
Sinto que ainda amo alguma coisa
uma propriedade esquisita qualquer
perturba acreditar
alguma coisa justifique
resistir.
Amanhã no interrogatório
não sei como estará o ânimo
mas talvez me mostrem
um retrato dela.
9
É possível que não me matem
hoje cheguei a me convencer disso
afinal, meu sogro é da marinha
tenho apenas vinte anos
e um certo ar sensível
sem os óculos.
Pesquiso na comida minhas chances.
Quando ela melhora não acredito
que eles vão me matar
pelo menos enquanto durar
essas batatas fritas
10
Inquérito.
Muito general estrelado
comida de oficial
vista da Praça da República.
Eles encenavam ter pena de mim
e perguntaram minha idade.
Eu disse: 200 anos.
11
Algumas marcas desaparecem
outras ficam por uns tempos
aquele gosto
aquele cheiro
aqueles gritos
estes permanecem
calados lá dentro
colados numa memória essencial
sem intervalos possíveis,
vale dizer, definitivos.
12
Hoje à noite
os gritos foram mais altos.
À minha esquerda
está o Gaúcho
depois o cara que assobia
Ângela foi retirada ontem
à minha direita
Stuart já morreu
Ronaldo e Juca
estão mais no fim
e no fundo do corredor
o motorista da CTC
que eles quebraram a mão
chora.
De quem serão os gritos hoje?
13
Esse silêncio enlouquece
se houvesse mais alguém
seria mais fácil
Hoje veio o médico
falou pro coronel
que ainda dá prá bater
nas minhas costas.
14
A roupa que eu vesti hoje
para cobrir um ponto frio
não era a minha e podia ser
a de alguém assassinado.
A camisa tinha sangue coagulado,
um cheiro estranho de súplica.
15
Andar após as refeições
dá esperanças
olhar para os dizeres das paredes
me angustia:
“Celso” “Injustiça" “Desamor”.
Por coincidência esse cara eu conheci
caiu com uma Kombi
morreu aqui em dezembro de 70
durante o sequestro.