Recordações do paraíso

Alex Polari

RECORDAÇÕES DO PARAÍSO

 

1

 

Objetos pequeninos

da cela

corneta que toca

crepúsculo que cala

Objetos pequeninos

da cela

caneta que escreve

coração que arranha

Abjetos sentimentos

na cama

Manta que cobre

medo que desnuda

 

2

 

Hora do rancho

a bandeja passa

na grade

o rádio toca no bolso

do sentinela calado

ao lado do fôsso

onde devem ficar

os cadáveres.

 

4

 

Eu não me lembrava

do meu antigo rosto

até olhar na privada

e cuspir nele.

Não, não pode ter sido

a mesma face,

não me olhe assim, não tenho culpa.

 

6

 

Sinto que ainda amo alguma coisa

uma propriedade esquisita qualquer

perturba acreditar

alguma coisa justifique

resistir.

Amanhã no interrogatório

não sei como estará o ânimo

mas talvez me mostrem

um retrato dela.

 

9

 

É possível que não me matem

hoje cheguei a me convencer disso

afinal, meu sogro é da marinha

tenho apenas vinte anos

e um certo ar sensível

sem os óculos.

Pesquiso na comida minhas chances.

Quando ela melhora não acredito

que eles vão me matar

pelo menos enquanto durar

essas batatas fritas

 

10

 

Inquérito.

Muito general estrelado

comida de oficial

vista da Praça da República.

Eles encenavam ter pena de mim

e perguntaram minha idade.

Eu disse: 200 anos.

 

11

 

Algumas marcas desaparecem

outras ficam por uns tempos

aquele gosto

aquele cheiro

aqueles gritos

estes permanecem

calados lá dentro

colados numa memória essencial

sem intervalos possíveis,

vale dizer, definitivos.

 

12

 

Hoje à noite

os gritos foram mais altos.

À minha esquerda

está o Gaúcho

depois o cara que assobia

Ângela foi retirada ontem

à minha direita

Stuart já morreu

Ronaldo e Juca

estão mais no fim

e no fundo do corredor

o motorista da CTC

que eles quebraram a mão

chora.

De quem serão os gritos hoje?

 

13

 

Esse silêncio enlouquece

se houvesse mais alguém

seria mais fácil

Hoje veio o médico

falou pro coronel

que ainda dá prá bater

nas minhas costas.

 

14

 

A roupa que eu vesti hoje

para cobrir um ponto frio

não era a minha e podia ser

a de alguém assassinado.

A camisa tinha sangue coagulado,

um cheiro estranho de súplica.

 

15

 

Andar após as refeições

dá esperanças

olhar para os dizeres das paredes

me angustia:

“Celso” “Injustiça" “Desamor”.

Por coincidência esse cara eu conheci

caiu com uma Kombi

morreu aqui em dezembro de 70

durante o sequestro.

 

 

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— Colofão

Coordenação

Marcelo Ferraz (UFG/CNPq)

Nelson Martinelli Filho (IFES/UFES/CNPq)

Wilberth Salgueiro (UFES/CNPq)

Bolsistas de apoio técnico (FAPES)

Juliana Celestino

Valéria Goldner Anchesqui

Bolsistas de pós-doutorado (CNPq)

Camila Hespanhol Peruchi

Rafael Fava Belúzio

Pesquisadores/as vinculados/as

Abílio Pacheco de Souza (UNIFESSPA)

Ana Clara Magalhães (UnB)

Cleidson Frisso Braz (Doutorando UFES)

Cristiano Augusto da Silva (UESC)

Diana Junkes (UFSCar)

Fabíola Padilha (UFES)

Francielle Villaça (Mestranda UFES)

Henrique Marques Samyn (UERJ)

Marcelo Paiva de Souza (UFPR/CNPq)

Mariane Tavares (Pós-doutoranda UFES)

Patrícia Marcondes de Barros (UEL)

Susana Souto Silva (UFAL)

Weverson Dadalto (IFES)

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