RAPADURA
furei a fila e fui falar lá com o gerente
que tem nego aí na frente a fim de prejudicar
ele me disse: a fila tem que ser cumprida
e não tem outra saída se quiser vir me falar
pensei com meus botões em ritmo de fantasia
afinal qual das revoluções acaba com a burocracia
saí de lado vaiado pela audiência
e ninguém teve a decência de sequer me perdoar
injuriado saí meio abafado fui falar com o delegado
desse jeito não vai dar
minha carteira já tá cheia de carimbo
e tem nego ainda insistindo que eu não quero batalhar
fugi da fome e encontrei a poesia
que aos poucos me dizia
sou mais uma boca pra você alimentar
me vem um cara fugindo do absurdo
fingindo que entende de tudo dizendo
a rima é pobre
isso aí é uma loucura
isso aqui é uma ditadura
é melhor se comportar
fiquei calado no meu canto bem quietinho
ensaiei um assovio procurei me acalmar
com a mão no bolso rodopiei nos calcanhares
olhei pros lados e pros ares
resolvi me anistiar
foi aí que eu inverti o calendário
inventei um fuso horário e um horóscopo sem azar
não me acertei
mas pensei ele tá certo
eu vou dá uma de esperto
ah! eu vou me dar
me enchi de pose descolei a rima rica
mas é que a coisa não fica do jeito que é pra ficar
mudei de idéia
fiz greve
fiquei mudo
me liguei no conteúdo e...
tô aí ó... é eu tô aí... na-ma-ió!!!
Comentário do pesquisador
Segundo Afonso Henriques Neto (2014, p. 25), na apresentação da Poesia Completa de Bernardo Vilhena [Vida bandida e outras vidas], "Bernardo, ao relembrar a apresentação do grupo Nuvem Cigana no Teatro Municipal de São Paulo em 1976, a convite de Claudio Willer, comenta que, após ter lido 'Rapadura', recebeu do Willer um brinde com essas palavras: 'Ao homem que libertou a palavra ditadura'. Ditadura era uma palavra absolutamente proibida na época, fosse na imprensa, fosse na poesia".