RAMÓN
Tenho a boca cheia de flores improferíveis.
Vivo num país de silêncio e gritos.
Nasceram meninos sem canto.
A palavra fugiu da boca do povo
ou foi lavrada com sangue
no rosto dos fuzilados.
Os ventos, castigados, já não levam
o gemido dos vivos,
a canção das meninas mortas,
o grito dos sepultados pela hora.
Vivo uma hora de silêncio e gritos...
Recuso a parede imposta
e quero gravar com unhas e sangue
um canto de pedra que permaneça.
A pedra dos muros sobreviverá
à hora do massacre,
aos carrascos de Trelew, Tutóia,
à força da morte.
Meu canto corta a sua mudez
na cinza do muro e fere
o nome de Ramón Garcia Sanz,
na pedra, no peito, na boca
de todos os silêncios.
Os inimigos falam de tua solidão,
da derradeira noite de chuva,
como se em tuas veias
não rompesse o sangue dos incêndios,
o canto dos meninos armados,
a fúria de teu povo alimentada
em séculos de revolta!
(outubro/75)
Comentário do pesquisador
Pedro Tierra é pseudônimo de Hamilton Pereira da Silva. O poema "Ramón" integra a seção “Livro dos fuzilados”, parte do volume “Poemas do povo da noite”. Na página de abertura da seção, consta uma dedicatória: “Aos companheiros Ángel Otaegui, José Humberto Baena Alonso, José Luis Sanches Bravo, Juan Paredes Manot, Ramón Garcia Sanz, assassinados em Espanha”. Na segunda edição desse livro (coeditada pela Fundação Perseu Abramo e pela Publisher Brasil, em 2009), há um texto introdutório intitulado “Explicação necessária”. Nessa introdução, Pedro Tierra (Hamilton Pereira da Silva) informa: “Os poemas aqui reunidos foram escritos durante os cinco anos de prisão – de 1972 a 1977 – e publicados em volumes separados: Poemas do povo da noite (Ed. Livramento, S. Paulo, 1979), Água de Rebelião (Ed. Vozes, Petrópolis, 1983)” (2009, p. 19). A edição de 2009, que reproduz “Ramón” na página 104, informa que esse poema foi escrito em outubro de 1975.