1
Porque apontaste
a nudez do rei
estás nu na praça.
Mais que nu: teu gesto
despiu-te além da roupa:
abriu-te
a porta mais recôndita,
e o cofre
oculto por esta porta,
e,
no cofre,
revelou a tua essência mesma
de ser.
2
Ai que o rei ora te sabe
em claro sol!
A sua nudez, que indigitaste,
ninguém vê.
Há muito não se vê
senão o que indica
o soberano indicador;
faz tempo as gentes
acreditam somente
no que lhes conta o rei;
faz tempo só se vê
pelo olho do rei;
só se lê
pela escrita do rei;
só se existe
segundo o rei permite.
E em todas as consciências,
há muito, o rei
teleprojetou-se em púrpura e diamância.
3
Tu sabes
que ele está nu
e é disforme e flácido e enrugado
e grotesco e repugnante e tem
as partes podres, purulentas
— mas isso não importa
se ninguém pode ver
além de ti.
Se todos, ab initio, foram programados
para só detectar
púrpura e diamância.
Apenas uma nudez se fez visível
na ponta do teu gesto:
a tua,
que ao rei e aos seus poderes denuncia
um equívoco em ti
que subverte
o real ditado pelo rei.
4
Sim: o teu real
contraria o do rei.
Opõe-se ao de todos
que estão nesta praça.
Ah, nada aprendeste
do que te ensinaram!
Em que te distraías
— quando te mostravam
o que devias ver?
— quando gravavam
a púrpura nos olhos
e além dos olhos?
— quando te falavam
sobre a cintilância
do rei e seu séquito?
— quando repetiam
que o único real
é o do rei?
Em que te abismavas
— em que traição? —
quando trabalhavam
tua perfeição?
0 que maquinavas
— que plano? que mal? —
quando te moldavam
súdito ideal?
Não sabemos. Sabemos que descumpriste
o teu dever de ver e de viver.
Principalmente o rei
sabe
(bem já te advertira o Eclesiastes...)
e com um gesto convoca a punição.
5
Então é fugir
em
tresloucura
doidespero.
Sob a batuta real
as gentes se unem,
formam paredões
contra essa fuga.
Perto,
mais perto
o arfar hediondo
dos perseguidores.
E foges
e rompes
e pisas
e saltas
e grimpas
a torre
de Babel,
a escada
de Jacó
velozpanicamente!
Foges e te ocultas
e mordes, exausto, a poeira
deste canto de muro que te guarda.
Exausto, exausto,
ofegas
colado à sombra, ao chão.
Um átimo apenas para sonhar
com força
violência
raiva
um lugar,
por mais mínimo,
sem o dever de ver e de viver.
o real do rei.
E já
te fareja de novo a punição.