Exilada das manhãs,
de noite é que me visito.
Caminho só pela casa
e o viajar na casa escura
faz soar meus passos mudos
como em floresta dormida.
Me vêem, eu que não me vejo,
as coisas — de corpo inteiro.
O real está me sonhando,
o real por todo lado.
Não sou eu que vivo o medo;
em seu tapete de sombras,
por ele é que sou vivida.
Aonde me levam estes passos
que não soam e que não vão:
às armadilhas do vôo
como a paisagem no espelho
espatifado no chão?
O escuro é tanque de limo
para minha sombra escolhida
pela memória do dia.
Deixo o mel e ordenho o cacto:
cresço a favor da manhã.
Rio de Janeiro, 1972
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*Do Tupi: Noite-Dia
Comentário do pesquisador
O eu lírico de Olga Savary se identifica como exilada: "Exilada das manhãs". Ela está excluída, retirada de seu lugar, algo muito recorrente durante os anos de 1971-1977, período em que, durante os Anos de Chumbo, brasileiros foram expulsos de seu país em função de questões políticas. O livro de onde vem o poema, por sinal, chama "Sumidouro"; o nome se refere a um recurso da natureza, mas também evoca certo sumiço, algo que é a própria contingência vivida por um exilado. Mas ao final do poema o eu poético traz certa esperança, crescendo a favor da amanhã - apesar das trevas, haverá de ser outro dia.