Passeata dos mortos

Maciel de Aguiar

PASSEATA DOS MORTOS

 

Deixem-nos passear pelas ruas

com a esperança incontida

dos sonhos no emaranhado

dos anos e dos gritos

abafados no peito.

São meninos guerreiros,

são heróis cambaleantes,

são corpos fugidios.

Não queimem suas almas,

não torturem seus pensamentos,

não matem suas convicções.

Deixem-nos cantar

a canção dos esvaídos

diante dos mortos,

relíquia dos possuídos,

pois aos olhos já é o bastante.

Tenho visto tantos corpos

pisoteados pelos coturnos,

que tentam impedir

a primavera que insiste

em uma estação de rebeldia.

Deixem-nos em sofrimento

aos céus de chumbo da pátria,

túmulos de nossos tempos

construídos sob os escombros.

Eu os vi,

mortos sem direito à sepultura,

caminhando pelas ruas

com os esqueletos desengonçados,

tíbias tortas em brancura pálida

ao sol de dezembro.

Eu os vi,

condenados sem direito de defesa,

sentados no banco dos réus,

ouvindo as sentenças

por crimes não cometidos

em cem anos de pesadelos.

Eu os vi,

desgraçados em busca

da vida pelos esconsos,

remoendo as tragédias,

relembrando o suplício,

na escuridão do sótão.

Eu os vi,

escrevendo poemas

nas trevas para ninguém,

enquanto muitos na claridade

dão de ombros para as dores

e tendo a glória aos pés

caminham sobre a cal do tempo.

Eu os vi,

meninos frente os espelhos

olhando as chagas abertas

enquanto as valas comuns

esperavam pelos corpos

cobertos de escoriações.

Eu os vi,

enlouquecidos

perambulando nas cercanias

com a puberdade que nem ao menos

lhes cobriu o corpo de pêlos,

e já procuram nos quintos

encontrar os cadáveres...

Eu os vi

esvaídos nos arrabaldes,

sem nome,

sem cruz,

sem data,

sem vida.

Eu os vi,

chorando pelas esquinas,

em busca dos testículos,

enquanto os federais

palitavam os dentes

ao banquete das carnes.

Eu os vi,

em busca de suas causas,

tateando os caminhos sem volta,

pés descalços que cumprem

a sina de peregrinar

contra o vento que os empurra.

Eu os vi,

carregando seus féretros,

amanhã serão nossos filhos,

um dia serão nossos netos,

meninos que nascem no outono

já com aventuras nos olhos.

Eu os vi,

em passeata pelas ruas

cantando hinos à Liberdade,

enquanto outros, coitados,

imploram aos algozes 

com os corpos esvaídos:

Deixem-nos viver ao menos

  os vinte primeiros anos

  de sonhos

  e rebeldia,

  depois,

  como de costume,

  empurrem-nos para o esquecimento...

Eu os vi,

meninos,

neste tempo de assombro…

 

 

Rio de Janeiro, 23.11.71

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