PASSEATA DOS MORTOS
Deixem-nos passear pelas ruas
com a esperança incontida
dos sonhos no emaranhado
dos anos e dos gritos
abafados no peito.
São meninos guerreiros,
são heróis cambaleantes,
são corpos fugidios.
Não queimem suas almas,
não torturem seus pensamentos,
não matem suas convicções.
Deixem-nos cantar
a canção dos esvaídos
diante dos mortos,
relíquia dos possuídos,
pois aos olhos já é o bastante.
Tenho visto tantos corpos
pisoteados pelos coturnos,
que tentam impedir
a primavera que insiste
em uma estação de rebeldia.
Deixem-nos em sofrimento
aos céus de chumbo da pátria,
túmulos de nossos tempos
construídos sob os escombros.
Eu os vi,
mortos sem direito à sepultura,
caminhando pelas ruas
com os esqueletos desengonçados,
tíbias tortas em brancura pálida
ao sol de dezembro.
Eu os vi,
condenados sem direito de defesa,
sentados no banco dos réus,
ouvindo as sentenças
por crimes não cometidos
em cem anos de pesadelos.
Eu os vi,
desgraçados em busca
da vida pelos esconsos,
remoendo as tragédias,
relembrando o suplício,
na escuridão do sótão.
Eu os vi,
escrevendo poemas
nas trevas para ninguém,
enquanto muitos na claridade
dão de ombros para as dores
e tendo a glória aos pés
caminham sobre a cal do tempo.
Eu os vi,
meninos frente os espelhos
olhando as chagas abertas
enquanto as valas comuns
esperavam pelos corpos
cobertos de escoriações.
Eu os vi,
enlouquecidos
perambulando nas cercanias
com a puberdade que nem ao menos
lhes cobriu o corpo de pêlos,
e já procuram nos quintos
encontrar os cadáveres...
Eu os vi
esvaídos nos arrabaldes,
sem nome,
sem cruz,
sem data,
sem vida.
Eu os vi,
chorando pelas esquinas,
em busca dos testículos,
enquanto os federais
palitavam os dentes
ao banquete das carnes.
Eu os vi,
em busca de suas causas,
tateando os caminhos sem volta,
pés descalços que cumprem
a sina de peregrinar
contra o vento que os empurra.
Eu os vi,
carregando seus féretros,
amanhã serão nossos filhos,
um dia serão nossos netos,
meninos que nascem no outono
já com aventuras nos olhos.
Eu os vi,
em passeata pelas ruas
cantando hinos à Liberdade,
enquanto outros, coitados,
imploram aos algozes
com os corpos esvaídos:
— Deixem-nos viver ao menos
os vinte primeiros anos
de sonhos
e rebeldia,
depois,
como de costume,
empurrem-nos para o esquecimento...
Eu os vi,
meninos,
neste tempo de assombro…
Rio de Janeiro, 23.11.71