PÂNICO DA MORTE ANUNCIADA
“É preciso estar atento e forte,
não temos tempo de temer a morte.”
Caetano Veloso
Não devemos acreditar
que morremos antes do temor
que se espalha pelo corpo
e deixa esvair o sangue,
fazendo aparecer
o branco pálido do medo
no lugar da rubra cor
das maçãs dos meninos febris
ardendo em chamas a face.
Não devemos admitir
que morremos antes do último
suspiro com uma bandeira,
um estilingue,
um livro de poemas,
um coquetel molotov,
um punhado de excremento
para jogar nos soldados.
Não devemos chorar os mortos
antes de fechar a última cova,
antes do último helicóptero
jogar nas profundezas
os corpos dos que se rebelam
antes dos quartéis fazerem calar
os que ruminam as mágoas
diante dos demônios,
os que trazem os gritos
mudos na garganta,
enquanto as marcas da tortura
deixam em seus corpos
lições do que não devemos sonhar.
Irmãos brasileiros filhos da puta,
puta,
puta,
puta
Pátria que pariu tantos tiranos
e nos faz agora lamber
os excrementos dos generais,
em posição de joelhos diante das gargalhadas.
Não devemos aprender
que somos covardes,
um bando de cordeiros
que passeiam despercebidos
e aceitam comportadamente
o Toque de Recolher,
enchendo de pânico os ouvidos.
Não importa se a morte
anunciada seja breve,
o compromisso com a vida
tem que ser maior,
mas viver um minuto,
um dia,
um mês,
um ano,
um século,
já não faz diferença.
Não devemos temer
o encontro com os assassinos.
Levamos nas veias
o alimento necessário
a todos os sediciosos.
Que bebam,
bebam,
bebam,
bebam
a seiva de nossas vidas;
que se alimentem de nossas vísceras;
que tirem de nossa carne
o sustento da tirania;
que arranquem os nossos olhos
e nos coloquem diante das trevas;
que nos deixem em estado de desonra
frente o opróbrio da vida,
mas que não nos intimidem
com a morte anunciada
antes da hora finda;
queremos viver,
queremos viver,
queremos viver
até o último instante
da busca da Liberdade.
Não devemos acreditar
que morremos antes do primeiro tiro,
que morremos antes do último grito,
que morremos antes da derradeira dor.
Não devemos acreditar
que morremos antes do medo,
que morremos antes do tempo,
que morremos antes da hora...
Não devemos acreditar
que morremos antes do dia,
que morremos antes do fim,
que morremos antes da vida.
Não devemos acreditar…
Irmãos brasileiros filhos da puta,
puta,
puta,
puta,
Pátria que pariu tantos tiranos.
Não devemos acreditar
que morremos antes da morte...
Rio de Janeiro, 30.10.73