OS QUE COLECIONAM CARTAS
Os senhores do regime
recebem centenas de cartas
em desesperados pedidos
para localizar o filho,
encontrar o marido,
saber notícias
de todos os desaparecidos,
levados nos camburões,
algemados pelos federais,
presos pelo DOI-CODI,
na porta da escola,
dentro de casa,
no caminho do trabalho,
aos olhos de todos,
ao clarão do dia,
sem o menor temor…
São cartas de mães
que pedem desesperadas;
são cartas de esposas
que suplicam de joelhos;
são cartas de anciãos
indagando pelos netos;
são cartas ao Palácio
do Planalto sobre os mortais;
são cartas ao regimento
de infantaria sobre os mortos;
são cartas ao quartel
com os tanques blindados;
são cartas ao Tribunal
Federal sobre as vidas;
são cartas à Escola Superior
de Guerra contra os inferiores;
são cartas ao Conselho
de Segurança Nacional
contra os inseguros;
são cartas ao Departamento
de Ordem Política e Social
contra os rebelados;
são cartas ao Tribunal
Militar contra os civis;
são cartas de desespero;
são cartas de pranto;
são cartas de dor…
Os senhores do regime
recebem milhares de cartas
em pedidos lacrimosos,
para devolverem os féretros,
entregarem os cadáveres,
terem de volta os corpos,
desaparecidos,
algemados,
espancados,
arrastados,
torturados,
humilhados,
diante das testemunhas,
frente os amigos,
com todo o constrangimento…
São cartas de filhos
que imploram pelos pais;
são cartas de maridos
que suplicam pelas esposas;
são cartas dos amados
que choram por suas amantes;
são cartas ao general
que as guarda na gaveta;
são cartas ao comandante
que as coloca sob o vidro;
são cartas ao coronel
que às fixa na parede;
são cartas ao juiz
que às esconde sob a toga;
são cartas aos catedráticos
que não às expõem nos currículos;
são cartas aos conselheiros
que lhes imploram a leitura;
são cartas aos federais
que às colocam num quadro;
são cartas aos superiores
que às lêem em voz alta;
são cartas do pavor;
são cartas da aflição;
são cartas do desespero…
Os senhores do regime
recebem milhares de cartas
em pedidos de indulgência
que nunca serão atendidos,
mas às colecionam
trocando-as entre si:
as de mãe valem mais,
as de pai valem menos,
as de filho nada valem,
as que prometem lamber
os excrementos dos tiranos
valem por três que nada
dão em garantia,
as que dizem votar
nos candidatos da ARENA
valem por dez que votam
nos opositores do MDB,
as que acreditam no Milagre
valem por vinte das dos incrédulos,
as que escrevem Pra frente Brasil
valem por mil
das que não trazem versos
ufanistas em seu bojo…
Os senhores colecionam cartas
como o regime coleciona vidas…
Rio de Janeiro, 21.10.71