Os meninos que brincam

Maciel de Aguiar

 OS MENINOS QUE BRINCAM

 

 

Os meninos brincam nas ruas

descalças das cercanias

juntando pedaços de corpos,

fragmentos de sonhos

de outros meninos

que enfrentam os fantasmas:

—— Troco um crânio perfurado à bala

   por outro afundado a torniquete…

—— Troco um fêmur dilacerado

   por uma costela quebrada…

—— Troco um maxilar fraturado

   por uma arcada ainda intacta…

—— Troco um perônio quebrado

   por uma bacia em razoável estado…

—— Troco um esqueleto com quase todos os ossos

   por outro em estado de putrefação…

Os meninos brincam com o amanhã

trocando pedaços achados

neste tempo de hoje

que nem ao menos viveram

a infância perdida.

—— Tenho um pé esquerdo 38…

—— Tenho um antebraço fraturado…

—— Tenho uma mão com dedos quebrados…

Os meninos montam cadáveres

sem dono,

sem nome,

sem atestado de óbito,

museu de dor

e resignação

aos céus da pátria

que a tudo vê,

a tudo ouve,

tudo sabe,

mas faz de conta

que nada acontece…

Os meninos sem escola,

sem lar,

sem teto,

sem futuro,

tomam lição de ortopedia

com os esqueletos

de outros meninos

que tiveram os corpos

expostos à saga dos tiranos:

—— Dois dedos por um dente…

—— Três costelas por uma mão…

—— Duas clavículas por uma perna…

Os meninos juntam os ossos

deixados nas cercanias,

aprendendo com os mortos

o significado da vida.

Os meninos de hoje

desenterram os demônios

cavando as próprias sepulturas,

recompondo cada parte

destroçada de outros meninos

que sonharam com a Liberdade.

Os esqueletos recompostos

cambaleantes agradecem

ao ofício de refazer

as vidas diante da Lista,

que a cada dia amplia-se

com novos nomes dos mortos.

A Polícia Federal

vasculha as cercanias

em busca assassina,

aranhas tecem mistérios,

cavalos alados relincham

sobre os corpos putrefatos

sem direito à cruz.

Estrelas cadentes suicidas

riscam os céus feito arco-íris

como se fossem os olhos

do carrasco diante do espelho.

Demônios ressurgem dos chãos

arrastando pesadas correntes,

para pendurar feito pêndulos

os esqueletos remontados

na tentativa de restabelecer

a dor dos esvaídos…

Os meninos brincam nas cercanias

com os cadáveres montados

das partes de outros meninos

que enfrentaram os assassinos

nas trevas de nosso tempo…

Os cadáveres refeitos

com os ossos que nunca foram seus

pensam até que estão vivos.

 

 

  Rio de Janeiro, 18.11.71

 

 

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