OS MENINOS QUE BRINCAM
Os meninos brincam nas ruas
descalças das cercanias
juntando pedaços de corpos,
fragmentos de sonhos
de outros meninos
que enfrentam os fantasmas:
—— Troco um crânio perfurado à bala
por outro afundado a torniquete…
—— Troco um fêmur dilacerado
por uma costela quebrada…
—— Troco um maxilar fraturado
por uma arcada ainda intacta…
—— Troco um perônio quebrado
por uma bacia em razoável estado…
—— Troco um esqueleto com quase todos os ossos
por outro em estado de putrefação…
Os meninos brincam com o amanhã
trocando pedaços achados
neste tempo de hoje
que nem ao menos viveram
a infância perdida.
—— Tenho um pé esquerdo 38…
—— Tenho um antebraço fraturado…
—— Tenho uma mão com dedos quebrados…
Os meninos montam cadáveres
sem dono,
sem nome,
sem atestado de óbito,
museu de dor
e resignação
aos céus da pátria
que a tudo vê,
a tudo ouve,
tudo sabe,
mas faz de conta
que nada acontece…
Os meninos sem escola,
sem lar,
sem teto,
sem futuro,
tomam lição de ortopedia
com os esqueletos
de outros meninos
que tiveram os corpos
expostos à saga dos tiranos:
—— Dois dedos por um dente…
—— Três costelas por uma mão…
—— Duas clavículas por uma perna…
Os meninos juntam os ossos
deixados nas cercanias,
aprendendo com os mortos
o significado da vida.
Os meninos de hoje
desenterram os demônios
cavando as próprias sepulturas,
recompondo cada parte
destroçada de outros meninos
que sonharam com a Liberdade.
Os esqueletos recompostos
cambaleantes agradecem
ao ofício de refazer
as vidas diante da Lista,
que a cada dia amplia-se
com novos nomes dos mortos.
A Polícia Federal
vasculha as cercanias
em busca assassina,
aranhas tecem mistérios,
cavalos alados relincham
sobre os corpos putrefatos
sem direito à cruz.
Estrelas cadentes suicidas
riscam os céus feito arco-íris
como se fossem os olhos
do carrasco diante do espelho.
Demônios ressurgem dos chãos
arrastando pesadas correntes,
para pendurar feito pêndulos
os esqueletos remontados
na tentativa de restabelecer
a dor dos esvaídos…
Os meninos brincam nas cercanias
com os cadáveres montados
das partes de outros meninos
que enfrentaram os assassinos
nas trevas de nosso tempo…
Os cadáveres refeitos
com os ossos que nunca foram seus
pensam até que estão vivos.
Rio de Janeiro, 18.11.71