OS LOUCOS QUE PERAMBULAM
Muitos dos que perambulam
sem a lembrança do próprio nome,
falando com as paredes,
contando as pedras do caminho,
revirando as latas de lixo,
procurando sua história
na história de tanta gente,
são alguns dos que se perderam
pelas salas de suplício,
vítimas da humilhação.
Muitos dos que perambulam
catando o milho dos pombos,
sendo enxotados feito bicho,
apedrejados de vez em quando,
levados para o manicômio,
abandonados pelos parentes
que se envergonham das dores,
são alguns dos que tiveram
os brônquios obstruídos,
vítimas da embolia.
Muitos dos que perambulam
pelas ruas entre prostitutas
que lhes afagam as angústias,
cobrem-lhes de afeto
e carinho nas alcovas,
levam-lhes nos braços,
escondendo-os dos assassinos,
para que escrevam poemas,
são alguns dos que perderam
os testículos sob os chutes,
vítimas deste tempo de horror.
Muitos dos que perambulam
escondendo-se dos que farejam
as vidas com voracidade,
fugindo das algemas
e dos camburões na esquina,
a levarem aos quartéis
como quem volta ao inferno,
são alguns dos abandonados
na certeza de que já estavam mortos,
vítimas da fúria dos carrascos.
Muitos dos que perambulam
procurando pelos filhos
com uma fotografia nas mãos,
as roupas em desalinho,
o coração dilacerado,
o desespero nos olhos
eternamente em poças d’água,
são alguns dos que foram atemorizados
pela ameaça da morte,
que invadiu tantas almas.
Muitos dos que perambulam
querendo ensinar lições
aos que fogem assustados,
com medo de serem vistos,
tornando-se indesejáveis,
prontos a serem levados
de volta aos cárceres
como perigosos reincidentes,
com os livros como prova do crime,
são alguns dos que foram vistos
em passeata distribuindo poemas
contra este tempo de opressão.
Muitos dos que perambulam
pelas redações dos jornais,
querendo publicar o impublicável
diante dos olhos do censor
que corta os versos,
subtrai os pensamentos,
espalhando a nova ordem
como se fosse receita de bolo,
dando outra versão ao fato,
são alguns dos que perderam as unhas
vítimas da própria profissão.
Muitos dos que perambulam
enfrentando os mais perversos
métodos de extrair confissão
como quem desafia a própria morte,
resistindo ao pau-de-arara,
sobrevivendo ao choque,
respirando após o afogamento,
como quem não se intimida
com a barbárie praticada,
são alguns dos que já não possuem
o que temer dos carrascos,
vítimas do aniquilamento.
Muitos dos que perambulam
pelas cidades possuídas,
evacuando sangue,
tragados pela embolia,
são alguns dos que perderam os sentidos,
dos que foram supliciados,
dos que vivem atemorizados,
que foram levados à loucura,
vítimas da obsessão
dos atrozes assassinos.
Muitos dos que perambulam
pela imensidão da Pátria
são alguns dos que já não se lembram
da própria história de vida...
Rio de Janeiro, 6.7.73