Os desaparecidos

Affonso Romano de Sant'Anna

OS DESAPARECIDOS

 

De repente, naqueles dias, começaram

a desaparecer pessoas, estranhamente.

Desaparecia-se. Desaparecia-se muito

naqueles dias.

 

Ia-se colher a flor oferta

e se esvanecia.

Eclipsava-se entre um endereço e outro

ou no táxi que se ia.

Culpado ou não, sumia-se

ao regressar do escritório ou da orgia.

Entre um trago de conhaque

e um aceno de mão, o bebedor sumia.

Evaporava o pai

ao encontro da filha que não via.

Mães segurando filhos e compras,

gestantes com tricots ou grupos de estudantes

desapareciam.

Desapareciam amantes em pleno beijo

e médicos em meio à cirurgia.

Mecânicos se diluíam

— mal ligavam o torno do dia.

 

Desaparecia-se. Desaparecia-se muito

naqueles dias.

 

Desaparecia-se a olhos vistos

e não era miopia. Desaparecia-se

até à primeira vista. Bastava

que alguém visse um desaparecido

e o desaparecido desaparecia.

Desaparecia o mais conspícuo

e o mais obscuro sumia.

Até deputados e presidentes evanesciam.

Sacerdotes, igualmente, levitando

iam, aerefeitos, constatar no além

como os pecadores partiam.

 

Desaparecia-se. Desaparecia-se muito

naqueles dias.

    Os atores no palco

entre um gesto e outro, e os da platéia

enquanto riam.

    Não, não era fácil

ser poeta naqueles dias.

Porque os poetas, sobretudo

  — desapareciam.

 

2

 

Se fosse ao tempo da Bíblia, eu diria

que carros de fogo arrebatavam os mais puros

em mística euforia. Não era. É ironia.

E os que estavam perto, em pânico, fingiam

que não viam. Se abstraíam.

Continuavam seu baralho a conversar demências

com o ausente, como se ele estivesse ali sorrindo

com suas roupas e dentes.

 

Em toda família à mesa havia

uma cadeira vazia, à qual se dirigiam.

Servia-se comida fria ao extinguido parente

e isto alimentava ficções

 — nas salas e mentes

enquanto no palácio, remorsos vivos

boiavam

   — na sopa do presidente.

 

As flores olhando a cena, não compreendiam.

Indagavam dos pássaros, que emudeciam.

As janelas das casas, mal podiam crer

— no que não viam.

    As pedras, no entanto,

gravavam os nomes dos fantasmas

pois sabiam que quando chegasse a hora,

por serem pedras, falariam.

 

O desaparecido é como um rio:

— se tem nascente, tem foz.

Se teve corpo, tem ou terá voz.

Não há verme que em sua fome

roa totalmente um nome. O nome

habita as vísceras da fera

como a vítima corrói o algoz.

 

3

 

E surgiram sinais precisos

de que os desaparecidos, cansados

de desaparecerem vivos

iam aparecer mesmo mortos

florescendo com seus corpos

a primavera de ossos.

 

Brotavam troncos de árvore,

rios, insetos e nuvens

em cujo porte se viam

vestígios dos que sumiam.

 

Os desaparecidos, enfim,

amadureciam sua morte.

 

Desponta um dia uma tíbia

na crosta fria dos dias

e no subsolo da história

— coberto por duras botas,

faz-se amarga arqueologia.

 

A natureza, como a história,

segrega memória e vida

e cedo ou tarde desova

a verdade sobre a aurora.

 

Não há cova funda

que sepulte

  — a rasa covardia.

Não há túmulo que oculte

os frutos da rebeldia.

 

Cai um dia em desgraça

a mais torpe ditadura

quando os vivos saem à praça

e os mortos, da sepultura.

 

 

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