Os corpos que flutuam

Maciel de Aguiar

OS CORPOS QUE FLUTUAM

 

Os corpos putrefatos

emergem do fundo das valas,

não há peso no mundo,

não há terra possível,

não há chumbo derretido,

não há saco de areia,

que os façam parar.

Os restos mortais

flutuam sobre as cabeças

frente às máquinas blindadas,

desafiando o regime,

desafiando a Ordem,

desafiando a gravidade.

Impossível conter

aqueles esqueletos fétidos

no fundo das covas,

onde não há cruz,

não há nome,

não há data,

e só a Lista dos Mortos

pode justificar a dor

dos parentes que choram

corroendo as unhas,

indagando pelas esquinas,

escrevendo cartas,

querendo saber notícias

dos filhos,

dos irmãos,

dos pais,

dos netos,

que se foram como se nunca

tivessem um dia existido.

Os coveiros assustados

trabalham dia e noite

para manter os corpos

sob sete palmos de chão,

escondendo-os dos que virão

cavar as próprias covas

para depois flutuarem,

denunciando o poder.

Os cadáveres ao ar

resistem ao tempo reverso

sob o sol de raios fúlgidos,

à chuva que lava os ossos,

deixando-os como a alvura

de um varal estendido;

resistem às noites longas,

expondo as flácidas carnes

que se despencam em alimento

para os animais da terra

e as aves dos céus...

A fila dos que virão

para a mesma desgraça

aumenta a cada instante.

Mais cadáveres cavam

as covas sem fim

antes do último tiro

na testa,

no peito,

na fronte,

como um Cristo sobre as nuvens,

desafiando a gravidade

que ordena à artilharia

a descarregar todas as balas

pelos ares da pátria,

perfurando os corpos

que ainda resistem

ao horror de hoje

e às cinzas do amanhã.

Os corpos que flutuam

sobre as covas como plumas

caem finalmente no fundo

aos olhos crispados do assassino

que não admite rebeldia,

não aceita insubordinação,

não tolera voluntariedade.

Os corpos no fundo

de suas covas recebem

a terra prometida

que os fará apodrecer

para que nunca mais insistam

em desafiar o regime.

Os corpos putrefatos

que desafiam as Ordens

ditadas pelos tiranos

agora jazem no fundo

de sua eterna morada.

 

Ponte Nova/MG, 17.6.70

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