Os afugentados

Maciel de Aguiar

OS AFUGENTADOS

 

 

Os meninos fogem para o mato 

com as armas de papelão, 

palavras na boca,
estilingues em punho,
e bolinhas de gude na capanga, 

desafiando os soldados 

para a guerrilha desigual:

Venham para o Ribeira…   

Venham para o Araguaia…   

Venham para o Caparaó…

Cada qual com o sangue 

fervilhando nas veias; 

cada qual com o sonho 

acalentado no tempo
que nem ao menos viveu. 

Cada qual com a estimativa
de vida de mais dois ou três anos 

estampada nos olhos
sem o temor da morte,
convidando outros meninos
para a aventura da vida
diante da ameaça
por um fio,
por um veio,
por um sonho:
Somos infantes…
Somos guerreiros… 

Somos cidadãos do mundo…,
que deixam em casa

as mães se descabelando, 

perguntando por seus endereços, 

fazendo promessas aos céus,
rezando novenas sem fim,
à espera de que mandem notícias 

que não venham pela voz do rádio, 

nem pelas páginas dos jornais, 

nem nos cartazes dos procurados. 

Mas, como sou frágil
e pequeno,
nunca aprendi pelotar
de estilingue
ou de bodoque; 

de guerrilha, só de ouvir dizer;

e de mosquetão 

e clavinote, 

só conheço os do meu bisavô
pendurados na memória 
da Guerra do Paraguai. 

Vos peço desculpas, companheiros, 

pois ficarei por aqui,
que tenho medo da selva,
dos bichos notívagos
e das cobras peçonhentas;
nem sei nadar direito
e só me atrevi nas águas
das barrancas do Cricaré…
Além do quê, me falta coragem… 

Ficarei por aqui, companheiros, 

mandando versos pelos ventos
aos corações venturosos,
que da guerrilha só ouço dizer
de morte
e provação,
dos que não mais se pertencem, 

nem podem se entregar,
nunca se darão por vencidos
e nem serão encontrados,
tragados pelo rio grande,
os corpos boiando nas águas,
jogados nos alagados.
Uns, se tiverem sorte,
terão direito a uma cova
para os animais da terra
se alimentarem das carnes
sediciosas
e tenras.
Ficarei por aqui, companheiros, 

na pele de negros-brancos,
mulatos-índios, 

que neste tempo de hoje 

ainda fogem pelas florestas 

correndo dos capitães-do-mato, 

das capturas do governo, 

das forças públicas armadas 

até os dentes para o confronto 

com os sonhos da Liberdade. 

Os séculos repetem a saga 

dos que são afugentados 

aos terrenos inóspitos; 

mas quem haverá de dizer: 

Não façam isso, meninos! 

Não façam isso, infantes! 

Não façam isso, guerreiros! 

Quem terá o direito
de cercear a voluntariedade 

dos primeiros vinte anos? 

Ficarei por aqui
como um poeta que se esconde,
que já não se atreve a poucos metros 

além da rua do Catete,
e que, de vez em quando,
olha a Praça José de Alencar,
admira-o em sua cadeira
de tantos anos empedernida. 

Vim de longe,
tenho apenas vinte e dois anos, 

e já nem sei como voltar 

à província distante
que nem sente minha falta. 

Enquanto uns meninos fogem
para o mato com estilingues 

para enfrentar os soldados, 

escrevo poemas aos que têm medo 

de aventurar-se pelos caminhos.

 


                       Rio de Janeiro, 29.5.74

 

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