Oleogravura da sala de tortura

Maciel de Aguiar

OLEOGRAVURA DA SALA DE TORTURA

 

 

Na escuridão da pálpebra,

os olhos dos condenados

desenham geometrias planas,

enquanto os pesadelos descem

ao inferno arrastando

os corpos disformes.

Matérias se diluem

nos labirintos de espelhos,

enquanto os pássaros assustados

se aquietam na escuridão,

com os dorsos corroídos.

No espaço dos sonhos,

um arco-íris opaco

bebe a seiva dos lábios

dos mortos sem sepultura.

Ali não há luz

que penetre o coração

dos impiedosos assassinos,

para que tenham piedade

de todos os esvaídos.

Os antepassados não sabiam

do atavismo dos descendentes

em aniquilar tantas vidas

com tamanha crueldade.

Nas ruas da cidade,

os que conversam com os cadáveres

passeiam sem saber

o que se passa do outro lado

da parede intransponível...

Cães vadios farejam

as latas de lixo deixadas

à procura de alimento.

Prostitutas dançam

sobre a sombra dos corpos

que se dão nas alcovas.

Mães ainda acalentam

os filhos antes que cresçam

e se percam no mundo

levados pelo sentimento

da procura angustiada.

Meninos oferecem a carne

para a circuncisão do sexo.

Bocas mastigam o alimento

no exercício cotidiano,

mas na sala do suplício

ninguém comenta a desgraça.

Todos são parecidos,

todos são iguais,

todos padecem do infortúnio,

amontoados uns sobre os outros,

esperando pela hora

de ofertar os corpos

aos torturadores insanos.

Um terror ronda

aquelas almas de vertigem...

Pesadelos de pálidas mulheres,

vestidas de breu,

trazem velas acesas

e formam uma procissão

de fantasmas corcundas

ante à imobilidade,

oferecendo o líquido de um cálice

a todos os que têm sede: 

Não vos alimentaremos com nossos corpos...

Não nos façam vomitar as entranhas...

Não nos matem antes da morte...,

enquanto a cidade se aquieta

frente à agonia da dor

dos que enfrentam o destino.

A noite passa,

o dia passa,

a hora passa,

o mês acaba,

o ano recomeça

no sofrimento da sala,

e nem ao menos um pé de cacto

brota do sangue seco.

Vida de tormento,

  vida de lava de fogo,

  vida de pó de crânio

  sobre o peito de melancolia...

Os corpos em delírio

suplicam aos céus

pela morte súbita

e indolor

a pôr fim ao padecimento

e ao açoite da carne:

Queremos um tiro na cabeça...

Queremos uma carga de dinamite...

Queremos a explosão de um milhão

  de toneladas de trinitrotolueno...

Mas a escuridão das pálpebras

cobre a todos com pesadelos,

e os demônios dos quintos arrastam

os corpos ceifados de uns

para o caldeirão de chumbo.

Os carrascos palitam os dentes

depois de saciar os instintos;

corpos açoitados nus,

gosma do ventre dos sediciosos,

tatuagens de mãos em sangue

cobrem as paredes deixando

uma oleogravura de tumba

e pavor eternos.

 

 

                    Rio de Janeiro, 22.8.73

 

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