ODE ÀS SECAS DO NORDESTE
1. Na estrada norte era noite
na estrada sul era dia
Em todo o Sertão queimado
que diferença fazia
se o sol nascesse de noite
se a lua enchesse de dia?
— O resultado era o mesmo
em cada boca vazia
cada estômago encolhido
cada pá de terra esguia
cada enxada que cavando
só pedra e fome trazia:
nem grão cozido ou farinha
fumo angu mel-rapadura
molambos que os lombos toscos
cobrir do calor não vinham
2. A estrada norte nem sabe
se a estrada sul vai levando
o arrastar das boiadas
(descaminhadas, perdidas)
os paus-de-arara vendidos
aos graúdos latifúndios
a sombra dos rostos gastos
todos os joãos, as marias,
os antônios, as comadres
as cacimbas entupidas
riachos sem correntezas
a rede chã, incertezas
no medo dos retirantes
os pés-no-chão das veredas
os rastos das estiagens
mutilação das vazantes
3. Juremal, terra fendida
os carros-de-boi calados
as rezas, as benzeduras
contra as bicheiras do mal
Tanto papel carimbado
(a Lei exige, que jeito!)
para enterrar os morridos
justificar os matados
4. Estradas (capões do norte)
carreadas para o Sul
varrendo o chão do Nordeste
(sob o Cruzeiro do Sul)
do povo crente da terra
da gente aferrada ao chão
que vira bicho-sem-alma
no toldo de um caminhão
fugindo da morte-fome
do sodoro, fava-brava
da lama em que torna a água-
sede-morte do Sertão
5. — Homem cadê teu jumento
alqueires de plantação
aquela vaca leiteira
as raízes do algodão
o açudeco (arrombado)
teu pé de milho-em-pendão?
— Cadê a casa de taipa
tuas ramas de feijão
os terços do Mês-de-Maio
tua força de varão
tua honra de marido
tua Mãe para a abenção
a cova do teu Pai morto
integrado nesse chão?
— Tudo ficou no descampo
no casco da solidão
nas roças em queimamento
(sol de velha maldição!)
O homem-Nordeste em fuga
em desespero de cão
parte em busca de ocidentes
(geografias de eleição
dos votos encurralados
da ceifa da votação)
E a gente don't know onde
habitar um outro chão
6. Muitos percorrem caminhos
— os apelos asfaltados —
esperando o prometido
teto roupa eito e pão
No vazio dessa espera
descambam nas valas rasas
sonhando com o seu retorno
às invernas do Sertão
Outros confusos se esvaem
consumidos pelos vermes
ou aves-balas errantes
que cruzam tantos caminhos
e arrancam dos retirantes
a raiz do coração
7. Na estrada Norte, só noite.
nessa estrada, quando, o dia?
Comentário do pesquisador
A cadência dos versos, o tipo de rima, o ecoar de certa estrutura de quadra, tudo isso lembra um pouco a dicção de João Cabral de Melo Neto, influência recebida por Zila Mamede. Além disso, já na primeira parte do poema (assim como se verá em outras, a exemplo das partes 4 e 6), este evoca debates como a fome, um problema recorrente no Brasil durante os Anos de Chumbo, uma vez que o governo militar não conseguiu suprir as necessidades básicas alimentares da população. Na parte 2, por sua vez, aparece referência aos "paus-de-arara", os quais, considerando a dimensão plurissignificativa do poema, podem remeter tanto aos caminhões que carregam os trabalhadores em condições terríveis, quanto um instrumento de tortura utilizado por militares durante a Ditadura dos anos 1970, época em que foi publicado o texto. O pau-de-arara, assim, é vendido ao latifundiário, sobrepondo possiblidades de referência ao trabalho e à tortura, bem como mostrando afinidades entre os coronéis da terra e os coronéis da farda. Na parte 3, seguindo ainda no contexto militar, é mencionado o papel que facilita o enterro dos morridos e a justificativa dos matados, cabendo lembrar que o número de assassinados políticos é bastante contundente durante o período autoritário que vai entre 1964 e 1985. No entanto, é na parte 5 quando talvez fique mais explícita a relação com a Ditadura Militar. Os nordestinos estão migrando “em busca de ocidentes” e melhores condições de vida, alimentação, moradia; contudo, nesse momento do país, os retirantes ainda precisam se deparar com “votos encurralados / da ceifa da votação”, em uma referência bastante forte a um período não democrático da política brasileira. O final melancólico do poema, por sua vez, sonha – desiludido – por um momento em que esse contexto de trevas e balas pare de bater sobre o peito do retirante.