O REI MIDAS
Tudo quanto tocas,
vês, ouves e sonhas,
falas, cheiras, cruzas
transforma-se em ouro.
O teu nome é Midas.
Passas pela vida
num carro dourado,
tua carruagem
de rei sem coroa
que leva outro rei
na sua barriga.
Teu suor é moeda
onde está gravada
a efígie de César.
Sem nenhum desdouro
em ti tudo é ouro.
Mesmo a maleável
lágrima que vertes
no enterro de um sócio
sendo de latão
muda-se em ouro
ao cair no chão.
Vales quanto pesas
e teu peso é ouro
(embora se diga
à boca miúda
que não vales nada).
E é a peso de ouro
que compras a vida
e alugas o amor:
teu esperma é de ouro
se é verdade que
ainda dás no couro.
Teu nome vale ouro
nos bancos, nas fábricas,
nos meios políticos.
Teu ouro derruba,
faz subir, elege,
nomeia e demite.
Faz abrir as portas
de qualquer palácio.
Faz fechar as portas
de qualquer meiágua.
Midas é o teu nome.
Após o jantar
na pérgula o teu
pesadelo é um
sumidouro de ouro.
Sonhas que és barata,
mosca, percevejo,
jurados de morte
pelo inseticida
do teu monopólio.
Às vezes nem sonhas:
dormes como um justo
ao preço de custo
coberto de glórias
e de borborigmos.
Teu pijama é de ouro
com listas de prata.
E quando é verão
uma pulga de ouro
astuta e acrobática
consegue sugar
algo de teu sangue
azul e dourado.
Sempre acordas cedo
e o teu desjejum
é café com ouro
(ou café com leite).
Abres o jornal
e catas logo o
mapa do tesouro:
cotações da Bolsa,
cotação do dólar,
cotação de tudo
que se muda em ouro
e vira cifrão.
Às vezes te irritas
com certas notícias:
casos de polícia,
coisas ostensiva-
mente subversivas
e de mau agouro.
Dás um beijo de ouro
em tua filan-
trópica consorte
e nos jovens príncipes
sempre fatigados
do eterno trajeto
entre a praia e a boate
e vais, como um touro,
para o teu trabalho.
E embora se diga
que és muito sovina
distribuis bom-dia
como um perdulário.
No teu escritório
rei Midas, governas,
monarca que muda
em ouro a existência
através de gestos
e de cabogramas.
Rei refrigerado
que controla indústrias
leves e pesadas
dirigindo o rumo
não só dos navios
como das boiadas.
À l'oura estenógrafa
de seios dourados
e dourado púbis
dás as tuas cartas:
ordens de vender,
ordens de comprar,
ordens de alugar
e outras providências
entre a cifra e a safra.
Não descansas nem
mesmo quando almoças
(estás de regime)
no clube o teu frango
que já vem dourado.
Conversas, te informas,
fazes transações,
trocas impressões
(sempre é uma troca).
Finda a sobremesa
— o pêssego é de ouro —
e após o café
que é com sacarina
regressas ao teu
mundo b(o)urocrático.
E ao cruzares, no
mormaço amarelo,
a zona bancária
testas se descobrem
e rostos se inclinam
religiosamente
à tua passagem.
Como um transatlântico
passas o canal
mais que competente
do metal sonante.
De novo em teu trono
lês correspondências,
abres relatórios
sobre investimentos,
vês letras de câmbio
dançarem nas horas
como bailarinas
e a tarde se muda
numa chuva de ouro:
os proventos do
dia cego e puro.
E sobre a cidade
desce lentamente
tua noite de ouro.
E no último andar
de um arranha-céu
— no teu miradouro —
segues os insetos
da noite-operária
e escutas as trevas.
Ouves os besouros
rodeando as lâmpadas,
bois nos matadouros,
e vês como escorrem
nas ruas de vidro
nas praças de couro
as fezes do povo.
Um argueiro de ouro
entra no teu olho.
Cantam hidrelétricas
ocultas na treva.
Debaixo da terra
linhas telefônicas
cruzam-se em surdina.
E tudo, na noite,
torna-se oficina
de um trabalho imenso
de ourivesaria.
Quem dorme ou vagueia
está trabalhando.
E o rei Midas fura
a treva-baralho
de onde sai cuspido
um valete de ouros.
E é de ouro o turboélice
que atravessa o espaço.
O mendigo mudo
tem úlceras de ouro.
Anúncios, tapumes,
estátuas, jardins,
sereias, fornalhas,
tudo é feito de ouro
do lavor mais fino.
Se o rei Midas toca
na folha de uma árvore
logo a pobrezinha
se torna dourada.
Não se pode nunca
fugir ao contágio:
um toque de Midas
tem ágio e deságio.
Se o rei Midas fala
em qualquer miséria
esta logo vira
miséria dourada.
E os cavalos do
seu haras só correm
quando a tarde é de ouro
(o ouro do crepúsculo).
E quando o rei Midas
arremata um broto
no leilão da vida
ao tocá-lo, torna-o
muito mais valioso:
túrgido tesouro
de nádegas de ouro.
Quando vai ao teatro,
Midas faz questão
de ópera que tenha
cantor com voz de ouro.
Só crê na justiça
com ouro de lei.
E, sendo católico,
só reza com os olhos
voltados para um
crucifixo de ouro.
Segundo o rei Midas
o que não é de ouro
não vale nem mesmo
o que o gato enterra.
Tudo deve ter
o seu lastro de ouro.
Soneto só presta
(papagaio louro!)
tendo chave de ouro
no bico dourado.
A morte só vale
se o cliente leva
para dentro da
jazida que é a terra
ouro em seu caixão.
Assim é o rei Midas,
varão de Plutarco,
varão plutocrático,
personagem aurífero
e magnificente
destes áureos tempos
de ouro por ouro
e dente por dente.