O QUE NASCEU DE MIM
Quando nasceu, chamei-o de filho.
Páginas de sofrimento
escritas sob os olhos nas trevas,
o cheiro ainda de álcool
do mimeógrafo clandestino,
grampeado às pressas
para que ganhasse o mundo.
A sensação de tê-lo
prolongou-se pela noite,
e os primeiros raios
que desvirginaram a manhã
encontraram-me ainda a reler
as linhas mal impressas,
escondido num quarto
de pensão da rua Taylor,
entre prostitutas
e bêbados
da Lapa como uma manjedoura:
— És um livro!
— És um livro!
— És um livro!
Não tinha a paternidade
escrita como convém
a todo poeta um dia.
Um misto de satisfação
e medo
apoderou-se de tudo:
vão me descobrir,
vão me encontrar,
vão me trucidar...
— A Ditadura mal sabe ler…
— A Ditadura mal entende…
— A Ditadura é ignorante...
conforta-me alguém
que tem o rosto exposto
nas praças,
nos postes,
nos bares,
nos muros,
em cartazes dos procurados
espalhados frente os olhos.
Que faz um poeta diante
de seu tempo senão sentir-se
clandestino enquanto muitos
são cassados como assassinos?
Mesmo assim, chamei-o de filho
e o acariciei pelas trevas
com as mãos trêmulas,
sentindo-me como se fora
um degolado caminhando
sobre a lâmina de um punhal:
— Não vendo palavras bonitas
e nem trago no bolso a música ufanista
para oferecer aos que fazem
de conta que nada acontece.
Tenho uma bússola sem ponteiro
e nem sei ao certo o rumo…
Uma prostituta ao lado
coloca para fora os seios
a convidar ao pecado.
Do outro lado da rua,
um cão com olho de vidro
procura pelos esconsos
os meninos dos cartazes.
— Lambei, miseráveis, lambei,
o ontem,
o hoje
e o amanhã...
Depois, o cão veio com o faro
assassino ao meu encontro.
Guardei minhas páginas proscritas,
ainda úmidas, dentro do colchão
esperando pelo fim.
O cão parou com sua fúria
sobre o corpo daquela mulher
possuída pela desgraça.
Rasgou-lhe as vestes,
se lambuzou de prazer,
sorveu o mel dos lábios,
derramou o veneno,
aumentando a dor,
e saiu como entrou.
Lembrei-me da sede nossa
de cada dia perdido
que ao menos tinha
conhecido a claridade.
Mas, em meus olhos, uma nuvem
de gafanhotos famintos
saiu das entranhas das trevas
e devorou o cão
e as carnes tiranas,
ficando apenas o esqueleto
jogado sobre a calçada.
Quando nasceu, chamei-o de desgraçado.
Vá contar nossa tragédia,
páginas de sofrimento,
palpitação
e horror.
Ninguém sabe quem lhe pariu
e sairá pelas ruas
da Pátria que ainda comemora
a conquista da Copa
sem admitir que muitos filhos
são esvaídos nas prisões.
Vá denunciar as injustiças,
o abuso de poder,
os federais na esquina
a espreitar a esperança.
Vá apedrejar as vidraças
dos palácios sobre as vidas
dos infantes venturosos.
Vá convidar outros meninos
para o mesmo desespero.
Corra deste tempo infame
que uma fogueira o espera
na rua com tantas pernas
que passam despercebidas.
Ai! Filho,
já não mais o terei
como um segredo eterno.
Siga o rumo do infortúnio
e quem sabe chegará
aos vinte anos antes de mim.
Ai! Filho,
ainda tão criança,
cheirando a álcool do mimeógrafo,
ponha-se a caminho da morte.
Quando nasceu, chamei-o de infeliz
como um barco de papel
frente a um dilúvio devastador.
Se chegar a alguma praia
milhares de fuzis o receberão.
Ai! Filho,
ponha uma pedra sobre o peito
que o meu coração fica por aqui
a palpitar com uma canção do Chico
frente o desespero em suas páginas,
que contam coisas
e histórias
dos mortos que caminham em busca
das sepulturas perdidas.
Mães que choram pelos cantos;
avós que esperam pelos netos
com o coração apertado.
Vá, como um crepúsculo,
espalhar a nossa sede
sobre todas as impossibilidades.
Vá espalhar o sangue
dos seios fartos das mulheres
e das carnes dos sediciosos,
que os cães com olhos de vidro
esperam famintos nas ruas.
Quando nasceu,
chamei-o de sepultura…
Rio de Janeiro, 10.11.72