O que nasceu de mim

Maciel de Aguiar

O QUE NASCEU DE MIM

 

Quando nasceu, chamei-o de filho.

Páginas de sofrimento

escritas sob os olhos nas trevas,

o cheiro ainda de álcool

do mimeógrafo clandestino,

grampeado às pressas

para que ganhasse o mundo.

A sensação de tê-lo

prolongou-se pela noite,

e os primeiros raios

que desvirginaram a manhã

encontraram-me ainda a reler

as linhas mal impressas,

escondido num quarto

de pensão da rua Taylor,

entre prostitutas

e bêbados

da Lapa como uma manjedoura:

És um livro!

És um livro!

És um livro!

Não tinha a paternidade

escrita como convém

a todo poeta um dia.

Um misto de satisfação

e medo

apoderou-se de tudo:

vão me descobrir,

vão me encontrar,

vão me trucidar...

A Ditadura mal sabe ler…

A Ditadura mal entende…

A Ditadura é ignorante...

conforta-me alguém

que tem o rosto exposto

nas praças,

nos postes,

nos bares,

nos muros,

em cartazes dos procurados

espalhados frente os olhos.

Que faz um poeta diante

de seu tempo senão sentir-se

clandestino enquanto muitos

são cassados como assassinos?

Mesmo assim, chamei-o de filho

e o acariciei pelas trevas

com as mãos trêmulas,

sentindo-me como se fora

um degolado caminhando

sobre a lâmina de um punhal:

Não vendo palavras bonitas

  e nem trago no bolso a música ufanista

  para oferecer aos que fazem

  de conta que nada acontece.

  Tenho uma bússola sem ponteiro

  e nem sei ao certo o rumo…

Uma prostituta ao lado

coloca para fora os seios

a convidar ao pecado.

Do outro lado da rua,

um cão com olho de vidro

procura pelos esconsos

os meninos dos cartazes.

Lambei, miseráveis, lambei,

  o ontem,

  o hoje

  e o amanhã...

Depois, o cão veio com o faro

assassino ao meu encontro.

Guardei minhas páginas proscritas,

ainda úmidas, dentro do colchão

esperando pelo fim.

O cão parou com sua fúria

sobre o corpo daquela mulher

possuída pela desgraça.

Rasgou-lhe as vestes,

se lambuzou de prazer,

sorveu o mel dos lábios,

derramou o veneno,

aumentando a dor,

e saiu como entrou.

Lembrei-me da sede nossa

de cada dia perdido

que ao menos tinha

conhecido a claridade.

Mas, em meus olhos, uma nuvem

de gafanhotos famintos

saiu das entranhas das trevas

e devorou o cão

e as carnes tiranas,

ficando apenas o esqueleto

jogado sobre a calçada.

Quando nasceu, chamei-o de desgraçado.

Vá contar nossa tragédia,

páginas de sofrimento,

palpitação

e horror.

Ninguém sabe quem lhe pariu

e sairá pelas ruas

da Pátria que ainda comemora

a conquista da Copa

sem admitir que muitos filhos

são esvaídos nas prisões.

Vá denunciar as injustiças,

o abuso de poder,

os federais na esquina

a espreitar a esperança.

Vá apedrejar as vidraças

dos palácios sobre as vidas

dos infantes venturosos.

Vá convidar outros meninos

para o mesmo desespero.

Corra deste tempo infame

que uma fogueira o espera

na rua com tantas pernas

que passam despercebidas.

Ai! Filho,

já não mais o terei

como um segredo eterno.

Siga o rumo do infortúnio

e quem sabe chegará

aos vinte anos antes de mim.

Ai! Filho,

ainda tão criança,

cheirando a álcool do mimeógrafo,

ponha-se a caminho da morte.

Quando nasceu, chamei-o de infeliz

como um barco de papel

frente a um dilúvio devastador.

Se chegar a alguma praia

milhares de fuzis o receberão.

Ai! Filho,

ponha uma pedra sobre o peito

que o meu coração fica por aqui

a palpitar com uma canção do Chico

frente o desespero em suas páginas,

que contam coisas

e histórias

dos mortos que caminham em busca

das sepulturas perdidas.

Mães que choram pelos cantos;

avós que esperam pelos netos

com o coração apertado.

Vá, como um crepúsculo,

espalhar a nossa sede

sobre todas as impossibilidades.

Vá espalhar o sangue

dos seios fartos das mulheres

e das carnes dos sediciosos,

que os cães com olhos de vidro

esperam famintos nas ruas.

Quando nasceu,

chamei-o de sepultura…

 

 

       Rio de Janeiro, 10.11.72

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