O JULGAMENTO DOS HERÓIS
“Foi visto caminhando entre fuzis
por uma rua larga,
sair ao campo frio ainda
com as estrelas da manhã.
Mataram Federico.”
Antônio Machado
Heróis cambaleantes inofensivos
peregrinam pelos corredores dos quartéis
à espera do ritual da morte:
— Este estudante soltava papagaio
no pátio do colégio na hora do recreio.
Papagaio é sinônimo de Liberdade.
Este estudante é subversivo.
Vai confessar todos os crimes:
quantos papagaios já soltou,
quantas vezes sonhou com a Liberdade,
quantos meninos,
ao invés de ficar ajoelhados
em caroços de milho no canto da sala
durante o intervalo das aulas,
ficam dando linha à imaginação?
— Mas papagaio é um brinco menineiro...
— Ninguém ousa desafiar o regime.
Está condenado a dez anos sem escola,
quinze sem estudo,
vinte sem o saber,
trinta sem ensino,
mas, antes desse recreio prolongado,
vai conhecer o balanço,
que uns resolveram chamar
vulgarmente de pau-de-arara.
Duas horas de cabeça para baixo,
vez por outra um corretivo nos cornos,
estudante atrevido dos diabos.
Espera só o País que estamos educando para você.
Heróis aflitos ensangüentados
espreitam pelo buraco da fechadura
os métodos brutais do suplício:
— Este operário entrou numa livraria.
Por certo, foi comprar livro subversivo.
Livro é sinônimo de consciência.
Este miserável precisa confessar:
qual é a sua organização,
quantos livros já leu,
quantas vezes sonhou com a Liberdade,
quantos operários,
ao invés de calejar as mãos
no ofício da ordem
e do progresso,
ficam folheando páginas?
— Mas livro é cultura...
— Ninguém ousa desafiar o poder militar.
Está condenado a dez anos com um salário de fome,
quinze sem direitos trabalhistas,
vinte sem assistência médica,
trinta sem emprego,
mas, antes dessas férias compulsórias,
vai conhecer a palmatória,
que mão de trabalhador precisa ser calejada,
não é para manusear livro.
Duas horas de cacetada
até o sangue ruim sair pelas unhas,
vez por outra uns eletrochoques
nos testículos,
no pênis,
na língua,
operário atrevido dos diabos.
Espera só o País que estamos construindo para você.
Heróis românticos sonhadores
aguardam na porta dos tribunais corrompidos
a absolvição pelo crime hediondo
de amar a Pátria sobre todas as coisas:
— Este professor insinuava coisas obscuras.
Coisas obscuras não podem ser insinuadas.
Isto é sinônimo de subversão.
Este professor tem que dizer:
quantas coisas obscuras já insinuou,
quantas conspirações já praticou,
quantas vezes sonhou com a Liberdade,
quantos professores,
ao invés de ensinar OSPB.
para dar exemplo patriótico,
ficam ensinando materialismo?
— Mas eu só ensinava matemática...
— Ninguém ousa desafiar a nossa revolução.
Está condenado a dez anos sem cátedra,
quinze sem salário digno,
vinte sem reconhecimento da profissão,
trinta sem o respeito do governo,
mas, antes desse descanso merecido,
vai conhecer a geladeira,
para congelar as suas insinuações.
Dois dias abaixo de zero
até os miolos endurecerem,
tornarem-se menos vulneráveis,
professor atrevido dos diabos.
Espera só o País que estamos adestrando para você.
Heróis ofegantes enclausurados
resistem nos subterrâneos da Pátria
aos métodos desumanos para arrancar confissões
pelos crimes nunca cometidos:
— Este jardineiro plantava flores vermelhas.
Flores vermelhas não podem ser cultivadas.
Isto é sinônimo de rebeldia.
Este miserável tem que falar:
quantas flores vermelhas já colheu,
quantos jardins já profanou,
quantas vezes sonhou com a Liberdade,
quantos jardineiros,
ao invés de plantar
espada de São Jorge,
para lembrar da arma do bem contra o mal,
ficam semeando flores comunistas?
— Mas eu só cuidava de um jardim...
— Ninguém ousa desafiar a Polícia Federal do Brasil.
Está condenado a dez anos sem emprego,
quinze sem direito à terra,
vinte sem oxigênio,
trinta sem primavera,
mas, antes desse retiro ecológico,
vai conhecer a cadeira do dragão,
vamos fritar seus miolos,
fazer cicatriz em sua perna,
vez por outra um chute nas entranhas,
jardineiro atrevido dos diabos.
Espera só o País que estamos plantando para você.
Heróis atordoados saltimbancos
comprimem-se nas celas fétidas
à espera da dança das cabeças:
— Este palhaço de circo dava piruetas acrobáticas
frente o pavilhão nacional,
fazendo rir as criancinhas.
Piruetas acrobáticas são sinônimo de insubordinação.
Este palhaço é comunista.
Estas piruetas são bolchevistas.
Este desgraçado tem que falar:
quantas piruetas acrobáticas já deu,
quantas vezes fez rir as criancinhas
para depois comê-las,
quantas vezes sonhou com a Liberdade,
quantos palhaços,
ao invés de fazer emocionar os corações
frente o pavilhão nacional,
ficam profanando a nossa bandeira?
— Mas eu só alegrava as pessoas...
— Ninguém ousa profanar as nossas armas.
Está condenado a dez anos sem circo,
quinze sem alegria,
vinte sem piruetas,
trinta sem picadeiro,
mas, antes dessas férias circenses,
vai conhecer a casa dos horrores,
para ouvir os gritos vindos das trevas,
ter os lábios comidos pelos ratos,
sentir os vermes penetrando os ouvidos,
vez por outra uma porrada nos rins,
palhaço atrevido dos diabos.
Espera só o País que estamos divertindo para você.
Heróis condenados aos mares
comprimem-se dentro dos helicópteros
à espera de serem jogados:
— Este ascensorista ouvia conversas no elevador.
Cabineiro de elevador sabe de muita coisa.
Elevador é sinônimo de inconfidência.
Este miserável vai ter que explicar:
quantas conversas já ouviu,
quantos falam mal do regime,
quantos conspiram contra o sistema,
quantos cochicham aos ouvidos,
quantos ascensoristas estão a serviço do inimigo?
— Mas eu só ouvia o meio das conversas...
— Ninguém ousa desafiar o Serviço
Nacional de Informação.
Está condenado a dez anos a subir a pé
as escadarias do Edifício Avenida Central,
quinze anos sem ouvir confidências,
vinte sem enxergar o caminho,
trinta sem qualquer meio de locomoção,
mas, antes desse exercício patriótico,
vai tomar um bom banho de mar,
próximo à Ilha Grande,
onde muitos passam merecidas férias,
enquanto seu nome ficará
na Lista dos Desaparecidos,
para ninguém perturbar seu descanso.
Vai, ascensorista atrevido dos diabos.
Espera só o País que estamos assessorando para você.
Heróis solitários românticos,
enclausurados frente os fantasmas,
esperam ansiosos pelos carrascos:
— Este poeta subversivo-maldito
escreve poesias sobre o nosso tempo,
conspirando contra a ordem vigente.
Poesia sobre o tempo de hoje
é sinônimo de subversão.
Este filho da puta
vai ter que engolir
todos os poemas que já escreveu:
vai ter que dizer
quantos versos subversivos já imprimiu,
quantas vezes sonhou com a Liberdade,
quantos poetas,
ao invés de fazer poemas para as misses,
poemas para serem publicados nas colunas sociais,
poemas para serem declamados
nas festas de debutantes,
poemas para agradar os críticos literários,
poemas falando das frustrações amorosas,
poemas mostrando o sentimento besta de cada um,
poemas para ajudar na alienação do povo,
poemas para confessar as paixões fracassadas,
poemas para serem indicados ao vestibular,
poemas para se expor ao ridículo,
poemas para fechar os olhos diante da tragédia,
poemas para ganhar concurso literário,
poemas para entrar para a Academia Brasileira de Letras,
ficam retratando o tempo de hoje,
incitando as massas,
conjurando contra o poder militar,
subvertendo a Ordem de Recolher.
— Mas ninguém publica os meus livros,
ninguém lê os meus versos,
ninguém quer saber dos meus poemas...
— Não ouse conspirar contra o governo.
Está condenado a dez anos sem rima,
quinze sem inspiração,
vinte na escuridão,
trinta sem editar livros,
mas, antes deste descanso poético,
vai conversar com o próprio cadáver,
vomitar as entranhas,
beber água de sal com vinagre,
cheirar fumaça de óleo diesel,
de vez em quando umas estocadas
de alfinete nos sabugos das unhas
para aprender a escrever
só o que é permitido,
poeta panfletário dos diabos.
Espera só pelo País que estamos inspirando para você.
Os heróis da pátria mergulhada na estupidez
são julgados pelos crimes
que nunca cometeram.
Rio de Janeiro, 13.3.73