O GENERAL QUE PASSEIA CÓLERA
“Suave é o anoitecer que favorece o réu.”
Charles Baudelaire
Toda tarde um general
passeia com seu cão
pela rua Correia Dutra,
indiferente aos que passam.
Num poste, o cachorro levanta a pata,
o general sacode as calças,
indiferentes a todos.
Na banca de jornal defronte,
a fúria luzidia patrulha
as manchetes permitidas.
O cão cata pulgas,
indiferente a tudo.
Na esquina do Catete,
o cão não teme os carros,
o general invade a rua,
indiferentes ao trânsito.
Senhor dono do mundo,
vai o general com seu cão,
passeando pela calçada.
Um bêbado cambaleante pede desculpas,
uma senhora octogenária abre caminho,
um militar faz continências acrobáticas,
um estudante passa por momentos de aflição,
um padre reza o Pai-Nosso,
um jornalista suplica por sua vida,
um operário teme por seu emprego,
só um hotel suspeito abre as portas,
que ninguém ousa impedir
as vontades do general,
soberano imperador dos destinos dos vencidos.
Na manhã seguinte, todos os bares são lacrados.
Uma senhora octogenária
fica proibida de sair à rua,
um estudante é preso,
um padre perde a batina,
um jornalista é desaparecido,
um operário recebe o Aviso Prévio,
só o militar se mantém
em estado de continência
frente ao hotel,
para manter o sigilo
da alcova do regime,
que ninguém ousa incomodar
o idílio do general.
Todos os dias,
impreterivelmente,
às cinco em ponto
da tarde de chumbo sobre a Pátria
um general com seu cão
passeia cólera
pela Correia Dutra.
Amanhã,
a Lista dos Desaparecidos
ganhará novas adesões.
Rio de Janeiro, 22.4.73